domingo, 13 de outubro de 2013

We Can't Stop: a exaltação da igualdade através do látex condenável.


Demorei muito tempo para falar apropriadamente sobre o que achei da performance da Miley Cyrus no VMA, e, de uma maneira geral, sobre todo o seu comportamento na era "Bangerz", seu terceiro disco de estúdio (quarto, se contarmos o "Introducing Miley Cyrus" como um álbum, posto que ele era um disco bônus de uma das trilhas sonoras de "Hannah Montana"). De um lado, essa demora se deu porque eu queria esperar o disco sair para entender se a vibe de "We Can't Stop" se fazia presente na "obra" tomada em seu conjunto. De outro, precisava confirmar minhas intuições através de algumas pesquisas.

A primeira indagação a que chego, muito além da discussão sobre a roupa dela estar ou não apropriada, ou, ainda, se é bonito ou não ela ficar colocando a língua para fora é: se essa nova postura da Miley Cyrus reafirma a masculinidade hegemônica, ou faz que ela ajude, de certamente, a  desconstruir a questão de gênero quando ela se coloca num patamar de fazer exatamente o que um homem faz dentro do mainstream (ostentação, conteúdo sexual desenfreado, etc.), só que, diferentemente do homem, sofre uma avalanche de críticas.

A investigação primária é: a quem essa conduta da Miley está servindo? Sem dúvidas, afirmo categoricamente que é ao capitalismo. Ela está sob a guarida de uma grande gravadora, com um trabalho arquitetonicamente planejado de publicidade, está em todos os canais de televisão e em primeiro lugar nas paradas musicais de 70 países. Do contrário, ela poderia ter feito um trabalho intimista, autobiográfico, sem apoio da gravadora. Cyndi Lauper lançou, em 1996, um álbum sem maiores divulgações, o "Sisters of Avalon", com conteúdo pessoal, e, a despeito do pouco sucesso, a crítica o aclama como um de seus melhores discos. Miley tem dinheiro para isso. Ela é filha de um dos maiores artistas country dos anos 80, afilhada de Dolly Parton e fez fortuna com Hannah Montana. Mas, não, ela escolheu o caminho mais fácil e, obviamente, mais dúbio, porque ela se coloca muito mais em evidência: o comportamento dela, então, adentrando em milhares de lares, afronta posições conservadoras e torna difícil estabelecer qual o serviço - ou desserviço - que o capitalismo, no caso, gera no seio social.

Contudo, o mainstream não se constitui de uma via única. Não se trata aqui de simplesmente jogar na sociedade a ideia de uma mulher estar agindo fora dos padrões patriarcais. O maistream busca na sociedade a inspiração necessária para a produção intelectual e a introjeta, depois de devidamente "refinada", como um produto a ser consumido. Então, aqui se conclui que não necessariamente a ideia vendida com o comportamento de Miley seja uma vulgarização da sexualidade feminina. O que defendo, por ora, é que a ideia de que a mulher não pode ser vulgar foi coletada pelo mainstream e jogado no palco do VMA na forma de Miley Cyrus protagonizando uma cena tida por grotesca, com a participação de ursos gigantes e insinuações de masturbação.

O raciocínio aqui é igual ao utilizado pelo mundo da Moda: há uma pesquisa de tendência que, depois de apurada, é lançada no mercado no formato do hype, do must-have, da necessidade vital de consumo. 

Logo após a performance do VMA, li na internet um texto (que agora não consigo localizar) que comparava o comportamento da Miley com uma cantora dos anos 80, que se preservou e não se valeu da erotização para fazer circular a sua música. Foi mais ou menos neste sentido a "carta aberta" de Sinead O'Connor insinuando que Miley estava se permitindo "prostituir" (cujo subtexto já toma como princípio que a prostituição é uma coisa negativa em sua essência). Porém, esse pensamento é reducionista, porque temos exemplos no mainstream, como Madonna e Cyndi que, por mais que se prestassem à manutenção do capitalismo - já que encontravam inequivocamente presas por contratos, geraram uma comoção comportamental. Cyndi faz uma ode à masturbação feminina em "She Bop", trilha sonora de "Os Goonies", e Madonna leva a insinuação para o palco. Assim como nos anos 80, temos hoje artistas femininas se COLOCANDO enquanto personalidades inteiras, e não apenas um substrato do domínio masculino.

Nicki Minaj, uma rapper negra que foge deliberadamente do padrão corporal prescrito pela misoginia presente no rap, Rihanna, que foi vítima de violência doméstica e que, alguns anos depois, reatou com o seu agressor, o que também foi tomado com um escândalo e cujas conclusões devem seguir a mesma lógica que aqui é exposta, e, por fim, Miley, ainda que estejam servindo ao capitalismo, podem, de uma maneira controversa, estar efetivamente influenciando o comportamento de milhares de mulheres. Porque, em 2013, elas se colocam em uma posição da nudez, da exposição, da provocação (do corpo e da alma) para falar, tanto do amor - terreno tido como eminentemente feminino, uma vez que o masculino é/era apenas impulso sexual - como do carro que acabaram de comprar com o dinheiro delas, colocando o machismo, no chão. A igualdade aqui se opera não "de baixo para cima": as mulheres não estão, representadas por Miley e cia., buscando subir escadas numa escala social construída historicamente para alcançar equivalência com os homens. O movimento é natural: elas apenas estão em pé de igualdade. A mulher que fala de carro, fugindo da ideia padronizada de ser uma gostosona que figura no videoclipe como mera extensão do veículo, apenas mais um objeto de prazer do pênis, agora fala de suas propriedades - materiais e enquanto ser humano. Ela pode, ela trabalha, ela compra.

Contudo, esse pensamento ainda precisa ser sofisticado a ponto de impedir um deslize conceitual que outros experimentos musicais do gênero tentaram. Em "Irreplaceable", da Beyoncé, ela trata o seu poder econômico como uma forma de lidar com o recalque de um término de um relacionamento. Ela subjaz o seu recalque ao fato de ser detentoras de posses e expulsa o ex-par romântico de casa. Os versos "Rolling her around in the car that I bought you, baby, drop them keys, hurry up before your taxi leaves" apenas evidenciam a construção social de que a mulher é inocente e não pode ser traída, e coloca como única arma disponível o dinheiro. Em "Like a Boy", da Ciara, a presença do outro masculino também se torna fonte essencial de busca, não por superação, mas por equivalência. Constroi na música uma atmosfera em que a mulher pode fazer exatamente como o homem, que é fazer o parceiro romântico chorar, que é estar festejando às quatro da manhã. Em ambos os casos, o padrão perseguido é a figura masculina. É uma imitação barata do modus operandi masculino, e não uma (re)afirmação do conteúdo feminino.

Então, a sensibilidade que deve permear o raciocínio, ao tratar de assuntos como a performance de Miley Cyrus é a de diferenciar, no conteúdo do mainstream, a exaltação do feminino enquanto celebração da igualdade efetiva, da mera utilização de elementos misóginos (como a "perfeição corporal" e a ostentação econômica) como forma de reagir à opressão masculina. Sem essa precaução, corremos o risco de cair na mesmice da condenação vazia, e, inevitalmente, da reprodução dos padrões machistas que contaminam a sociedade.