domingo, 2 de novembro de 2014

Lúcia Café: Da prostituta viciada em café e quiche de ricota com orégano.

Após deitar-me com três de mim, pelo preço vil de uma cantada barata e ilógicos fluidos sobre meu corpo, pego esta xícara vermelha de liquido preto e quente que, em franca substituição ao corpo preto de líquido branco, parece enfim aquecer os grandes lábios - vermelhos, mais ainda pelo batom da vez - que ostento em minha face. Eventualmente, tremo. Talvez seja o pó deste café, tão pouco moído que a droga em si se torna tão eficaz. Mas talvez seja a fraqueza das pernas que ficaram por tanto abertas. Visitas ao colo de meu útero, enquanto eu cavalgava em um colo sem nome, sem telefone, sem cartão de visitas, sem sabor, meu labor. Labor sem sabor que garante uma bolsa Prada falsificada, que garante um curso de inglês, cheap, numa ONG qualquer (pois busco a ascensão), que me garante o maquilagem vagabunda com a qual estouro minha pele.

Ou o que estoura minha pele não seja necessariamente a maquilagem, ou o pó, sempre compacto em tempos de minguadas carteiras, ou ainda compacto em tempos de "é bom ter alguma noção da realidade". Talvez seja aquele velho amor do filme de ontem, aquele clima tão estranho, embalado por aquela trilha sonora que provavelmente tocaria em meu prostíbulo - meu lar. A cada dentada em meu integral quiche de ricota com orégano, duas gargalhadas chorosas pela protagonista (não lembro o nome da atriz, quiçá sei) que sempre termina com o seu anti-príncipe encantado: um homem robusto, machista ao extremo, com piadas sarcásticas e um volume considerável em suas calças caras. Mas o bolo alimentar de minha saliva, massa, ricota e orégano, sem um café para ajudar a deglutir, parece ficar preso em minha garganta. O que tenho além de vários homens robustos, machistas ao extremo, com volumes sarcásticos e piadas consideráveis em seus velhos jeans rasgados?

Não sei se, por prudência ou desespero, saio da sala de cinema com minha microssaia de napa, uma bolsinha baguete antepenúltima moda, scarpin de oncinha com o salto um tanto gasto (mais gasto que eu, talvez), uma camisetinha livre, leve e solta, jogando o ar pesado de minha maquiagem puta-gótica para todos os lados, procurando, quem sabe, um grande amor, quem sabe, um cliente fixo, quem sabe, uma aventurinha. Chego a rogar, diante do espelho, pela graça da cruz de cristo em detrimento da desgraça da cruz de sífilis. Sou limpa, amém, mas a cada visita íntima, a cada acompanhamento bem-de-perto-tão-perto-que-é-dentro, penso quão mais limpo seria o véu da grinalda que, muito antagonicamente, eu ostentaria em uma igreja na qual eu pudesse pisar sem ser apedrejada. Na lanchonete no cinema, peço por um pacote de pipoca e uma xícara de café - tudo o que minhas economias podem pagar neste fim de mês. Tiro, com a ponta de meus dois dedos, mostrando o esmalte vermelho - vermelho-puta, porque trabalhamos com o exagero - o chiclé que eu estava mascando há dois dias. Derramo uma dose generosa de sal sobre a pipoca e outra nem tão generosa de açúcar no meu café. Derramo uma gota de lágrima e enxugo, não menos desesperadamente, o suor de minha testa que comprometeria o blush, o falso glamour, a esperança por boas notícias e a clientela da noite.

Acima do misto do cheiro do café, da manteiga, de meu desodorante quase vencido e de minha alma quase vendida, um amadeirado perfume toma conta da lanchonete, que pareceu perder todas aquelas cores berrantes diante do verde dos olhos do doutor que, em seu mocassim engraxado com dignidade (provavelmente de outros), pede, com voz grossa, um capuccino e uma água com gás (conta total: o dobro da minha, paga com uma nota de cinquenta, que voou displicentemente pelo balcão amarelo). Um frio e distante (mas, ainda assim, com um toque de menino que quer abocanhar algum doce) "Olá, boa noite" ecoou por todo aquele espaço geográfico e pelo espaço sideral que preenche minha cabeça oca. Já pensava eu em escrever o número de meu celular sem créditos em um guardanapo colorido qualquer, com meu batom, ou em indicar em quais orelhões daquelas redondezas eu apus o meu número. "Lúcia Café, negra, quente e pronta pra ser servida em sua xícara do amor". Do rápido diálogo dos meus olhos negros e sujos com aqueles cândidos e límpidos olhos verdes, formou-se um épico que poderia ser chamado pelos poetas de esmeralda empoeirada. Não teria eu forças para esticar minha microssaia para limpar a pedra preciosa; tampouco ele se incomodaria em sujar seu paletó - salvo se o jogasse no chão quando, por um trocado qualquer, me contratasse por aquela noite que sequer havia começado (para mim).

- A senhora (ou senhorita? ou vagabunda?) possui um jeito bastante peculiar de se vestir, ainda mais para um ambiente como este.

Logo pensei: "veado". Logo pensei: "padre trabalhando em minha conversão". Logo pensei: "não seria nada mau alguém para cuidar desta cabeleira". Logo pensei: "a conversão não seria nada mal, afinal a busco". Logo, não pensei em nada e apenas respondi:

- É o calor, não é mesmo?
- Sim, está bastante quente por aqui.
- O quão quente está? (com um olhar sacana, profano, convidativo e necessitado de dinheiro para outro café)
- Quente o suficiente para tirar este paletó e te pagar outro café.
- Aceito o café, mas não pense o senhor que ficará nisto.
- Ora, mas que ousadia, gosto de jovens assim, tão diretas.
- Não sou jovem, mas sou ousada.
- Beba seu café.
- Sou mais cara que um café.
- Creio nisto.
- Sei falar inglês e tenho roupas mais comportadas.
- Poderia ter usado uma roupa mais comportada hoje, não?
- Mas aí não estaria conversando com o senhor.
- Não me chame de senhor, trate-me como você.
- Te tratar como a mim? Não tenho dinheiro para tanto (embora "você" seja bem atraente). E também não trabalho com trocas de favores.
- Como trabalhar com troca de favores? Como trabalhar?
- Danço no escuro.
- Você está no escuro agora?
- Não, aqui está claro.
- Sim, bem claro.
- Bem claro que o senhor, ou você, enfim, esteja brincando com a minha cara e tenho que ir trabalhar.
- Como trabalhar?
- Danço no escuro.
- Mas aqui está claro... e claro que quero te conhecer. Diga, qual seu preço?
- Depende do serviço.
- Algo com a boca.
- Barato. Cobro pelo tamanho.
- Mas aí ficaria caro.
- Caro? É tanto assim?
- Sim, quero de sua boca as palavras de uma conversa grande o suficiente para te fazer...
- Fazer? Gozar?
- Talvez.
- Não gozaria com palavras.
- Mas gozaria de alguma felicidade.
- Não há felicidade na degradação.
- E qual o seu preço?
- Calcule o valor da reconstrução de minha personalidade. Subtraia algo do ambiente de vergonha no qual me insiro e multiplique pela glória da saída do submundo. Some o desgosto da exploração física. Tire o quociente e os dividendos de meus olhos que lacrimejam. Faça a raiz quadrada da igreja que eu não posso entrar, da sociedade que me marginaliza, do governo que não me dá assistência e dos pais que não me aceitam. Jogue o resultado nesta xícara e beba de uma vez só, deliciando-se com o sabor amargo de ser Lúcia Café.

Quem deve te pagar algo aqui sou eu.

E simplesmente saí. Deixei, pela primeira vez, o café quente pela metade e fui atrás de algum lugar em que meu celular finalmente tivesse sinal. Três mensagens da cafetina dizendo que existem clientes me esperando e não deveria ter saído por tanto tempo. Coitadinha, vagabunda, desavergonhada: lá vou eu, com meu corpo, comprar mais um quilo de pó. De café.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

São Eu

Embora eu tenha tentado me esquivar dos discursos, a ponto de querer lançar um manifesto do não-discurso com/em meu próprio corpo, nunca consigo deixar de analisar pontos específicos de um eu-fragmentado, cujas memórias estão esparsas dentro deste disco rígido que, de tanto ligar e desligar no curto-circuito cotidiano, chegou ao ponto de estar, mais do que nunca, flexível. Rígido e flexível, com o perdão do paradoxo, mas firme em determinados propósitos - entre eles, e talvez o mais importante, de ser mais maleável com as coisas. Porque, no ponto em que me encontro agora, a água que tanto bate, fura. E, assim reconhecendo-me, percebo que não há necessidade de furar; posso, simplesmente, absorver e ficar maior.

Este, inclusive, é o exercício do momento. Pegar tudo aquilo que o discurso diário me ensina a repelir em nome de uma rigidez (e higidez) física e emocional, assimilar e metamoforsear-me em algo maior. Cheio de enxertos, é verdade. Certamente os galhos que sairão de minha têmpora não corresponderão às raízes da sola calejada dos meus pés. E, sinceramente, eu nem quero essa pureza genética. Ter um siso com três raízes deveria ter sido suficiente para eu perceber que aquilo que eu estou destinado a ser não me agrada nem um pouco. Talvez, se eu tivesse percebido isto a tempo, eu não estaria perdendo sistematicamente minhas três fileiras de dentes em nome do descaso e ao descaso do tempo. São quase trinta. E está tudo errado, se considerarmos, claro, o destino discursivo.

Mas, como diz um grande amigo, a verdade é que eu não estou trocando moedas e, se fôssemos falar em parcas tecendo algum destino, meu destino não seria o que hoje é meu presente. Justamente por eu ter me permitido acordar Gregor Samsa num quarto escuro e solitário (que hoje eu chamo de descontrole psicoemocional), saí borboleta por algumas janelas e estou voando quase sem... destino. Name the place, and i'll be there. Mas não me deixe placas, porque não sou muito bom em seguir direções. Não presto atenção no nome das ruas. E nem das pessoas. Afinal, eu não esqueci alguns nomes no meio do caminho?

Assim sendo, ao menos hoje, em que notei uma vontade até então estranha de encarar as pessoas e saber que lá fora tinha um sol mais ou menos brando (mas não menos irritante), com toda uma lista de afazeres e, pasmem, marquei todos eles com a mesma canetinha rosa de sempre, quase tive a certeza que as coisas estão mais ou menos nos eixos que eu quero que estas mesmas coisas estejam. Talvez, de certa forma, seja só uma ilusão. Mas, se não fosse por elas, eu não estaria aqui perdendo horas de sono e vomitando verbetes que podem não fazer muito sentido para você, interlocutor, mas, ao mesmo tempo, têm tudo a ver com você. Ainda mais se considerarmos que eu sempre falo com o espelho. Falo, gesticulo, e, com um pouco de sorte, não acumulo mais sete anos de azar. Não, hoje eu não ia depositar estes fundos na poupança do desespero. Porque hoje, ao menos hoje, eu estou pretendendo tecer meus des(a)tinos em escala industrial. Escravizando o desajuste e lucrando com ele. Aprendendo com alguns erros e ressurgindo nu entre uma pedra ou sob alguma concha.

Não importa.


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Candelabro.

Nesta sala mofada,
faço meus cabelos voarem enquanto contemplo a solidão.

Na estampa de flores da cadeira,
faço meu corpo elástico nesta dor remitente.

Sob a luz tímida do sol,
Vislumbro os galhos tão trêmulos como este falso chão.

No olhar límpido do ontem,
Desenho um amanhã no sorriso daquele que me faz persistente.

7

7 dias e 7 noites imerso no mais impuro eu.
Rastejando-me entre memórias irritantes e planos de um talvez depois de amanhã.
Fazer com que este novembro mate o monstro criado em outros onzes
E
Tal qual a inocência da menina,
voltar a ser o melhor dançarino deste espaço vazio.
voltar a ser eu mesmo.
Mesmo
que por um instante, não desistir para existir.
Resistir para reexistir.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Ser e estar. Ser ao estar. Estar sendo. Não sendo.

All revolutions are impossible until they happen, then they become inevitable.



Uma queixa recorrente no meu relacionamento é que ele perdia muito tempo lendo. Talvez fosse muito mais uma manifestação da minha carência latente do que desapego à leitura. Afinal, eu lia. Mas, além de a leitura ser outra, eu sou mais do tipo audiovisual: leitura, apenas as legendas. Ou textos rápidos. 144 caracteres e eu sabia tudo. E vociferava em tweets desajeitados, todas as angústias do ser e estar (e do ser ao estar e do estar sendo ou não sendo).

Mas a verdade é que eu nada sabia. E, se não sabia, não comunicava com verdade. Ou, se com verdade, talvez ali não houvesse qualidade. Talvez, culpa da tenra idade. Mental. E física.

Agora que as rugas chegaram de vez e o nariz sofre o peso da gravidade, a grave idade deste retorno de saturno no qual não necessariamente acredito, mas os sintomas estão aí e astrologia é um ótimo adorno para qualquer texto, o fato é que eu precisei abrir livros. E a ansiedade da rapidez se tornou a ansiedade de não ser, para usar a palavra da moda, leviano. Fashion grammar police, e não há polícia que pacifique o não-saber. Ou o saber pouco. Mas sempre o saber-nunca-o-suficiente. Porque nunca é suficiente saber.

De histórias a corpos, me sensibilizei por uma causa que eu acreditava ser sensível desde os idos dos anos 2000, quando eu ainda cheirava rosas mortas e quando nós éramos a juventude. Baba, baby - olha o que perdeu. Baba, baby - a criança cresceu. Cresceu e ficou intolerante. Pirracenta. Manhosa. E a criança hoje enrugada não tem paciência para meios termos. Invoco então o apocalipse para bradar que os mornos serão vomitados. Nego terminantemente o modus operandi de um mundo que não guarda coerência em seu discurso. E aqui temos umas quinze doses de intolerância diárias, engolidas como comprimidos sem horários. E eu processo, processo, processo, mas não tenho muito saco para processos. Daí vem a primeira fonte de ansiedade: não mais quem sou eu, mas o que faço eu. Talvez eu esteja fazendo tanto, e polegares em riste sempre são mais agradáveis do que indicadores ameaçadores. E, no meio de uma coleção infinita de corações pixelizados, há sempre aquela vontade de fazer mais.

Aí caiu no meu colo a chance de fazer mais. Parecia muito bom. Mas, com o tempo, veio a parábola de que eu não posso acreditar que o carboidrato seja o meu melhor amigo a uma hora da manhã - é uma relação que pode até dar algum prazer, mas, depois de algum tempo, a azia e o gosto ruim na boca tomam corpo. E é um corpo corporativo, um corpo raso, um corpo que não faz sentido a não ser o incrível enaltecimento de egos cinzas cobertos por uma bandeira colorida que nada diz. Ao menos, não pra mim. E se eu contesto a corporação, é porque eu detesto como os corpos são formados em discurso. Os desvios são maravilhosos e é neles que eu quero repousar. Quero louvar o sinistro, quero me aconchegar nos braços de Satã, quero acordar naquele meio-fio meia-arrastão sinceramente nu e crudelíssimo em seu calor insuportável. Quero esse sangue cosmético escorrendo pela minha boca e os meus olhos roxos de canetinha hidrográfica. E com a mesma caneta, quero desenhar uma rua diferente, uma rua onde os miseráveis estejam do meu lado e que possamos hastear o estandarte roto das nossas imperfeições.

Mas de todas as imperfeições, eu descarto a contradição.

E na contradição de hoje, talvez haja uma boa dose de adição nestas substâncias confortáveis. É muito fácil ser a estrela de um show encenado sobre o estofado de uma cadeira cara. Por que não colocar os pés calejados para correr no asfalto quente e chorar lágrimas artificiais com quem em princípio, é a abertura de uma nova estrada? Por que não transportar as palavras desta folha branca e fria para os megafones? Que medo é este de pintar minha cara? Que medo é este de derrubar conveniências? É a antiga paixão pelo sofrimento, que transfigurou-se da tática adolescente "coloque uma música triste e sofra" para um método mais do tipo "corroa-se com as dissonâncias alheias e não faça nada para mudá-las"? Inegavelmente, é um ar muito mais tóxico que eu respiro. E, prestes a enlouquecer, se eu ficar preso entre as quatro paredes de sempre, vou me sufocar. 

Preciso ganhar o mundo.

One of the things that's happened, is that this movement has acquired an air of inevitability.

domingo, 31 de agosto de 2014

Divergente

Imagem retirada do Facebook da ativista feminista Heloisa Melino, com edição de Nina Moraes.


Eu gosto dos meandros da sincronicidade. Quem me conhece, sabe que eu sou aficionado por esta literatura infanto-juvenil que vira filme em Hollywood e a indústria deveria ter medo da merda que está fazendo. Não, não estou falando de 50 tons de cinza e sadomasô de mentirinha. Nem a meia dúzia de filmes românticos que brotam todos os anos nas telonas vomitando em cima de todo mundo uma versão moderninha do príncipe encantado. É bom, inclusive falar em príncipe encantado: o que eu pretendo falar versa justamente sobre tudo estar centrado na imagem do homem.

Hoje eu vi, finalmente, o filme Divergent. E, na mesma linha que a coleção Jogos Vorazes, que já virou filme, e a coleção Feios, que, infelizmente, ainda não teve sua adaptação cinematográfica (e deveria), Divergent tem um conteúdo político fascinante (e, sejamos verdadeiros, repetitivo): um mundo pós-apocalíptico em que pessoas são categorizadas, separadas em grupos que cumprem suas devidas funções, e não enchem o saco do governo. Aliás, como é óbvio, é o Estado que faz essa função. Se em Jogos Vorazes as pessoas são separadas geograficamente em 13 distritos, cada um com suas expertises previamente definidas pelo controle estatal, em Divergent eles dividem o mesmo território, porém, divididos em cinco facções - cada uma, obviamente, com uma área de atuação.

E então temos, em ambos os jogos, a protagonista: sim, uma mulher. Uma heroína, que consegue vislumbrar no esquema financiado pelo Estado a crueldade ínsita do Leviatã pós-apocalíptico. Uma heroína que é interpelada a "escolher quem ela é de verdade, não porque os outros querem, mas porque a escolha conduzirá aonde ela pertence".  A partir daí, ela larga sua facção de origem (e sua família - facção acima do sangue) e passa a prestar serviços ao Estado em sua facção de destino.

A partir daí, é muito tiro porrada e bomba, até que o Estado (contém spoiler) anuncia: Divergents threaten that system. Don’t get me wrong, there’s a certain beauty in your resistance. Your defiance of categorization. But it’s a beauty we can’t afford. (Divergentes ameaçam o sistema. Não me entenda mal, há uma certa beleza em sua resistência. A desobediência à categorização. Mas é uma beleza que nós não podemos permitir".

Talvez eu esteja lendo muito sobre Teoria Queer, mas é impossível ouvir uma frase como a acima e não refletir sobre como somos diuturnamente colocados em prateleiras - e, apesar de supostamente sermos agraciados com alguma dose de autonomia da vontade, nossa mobilidade não é real.

E então minha reflexão poderia ter parado aí. Mas abri o Facebook enquanto fumava meu último cigarro e vi a foto que ilustra esse post, publicada pela Heloisa Melino, acompanhado do texto abaixo:

Assim.. eu achei SUPER engraçada a história do "só tem bicha nessa cidade" e entendo o contexto (antes que me apedrejem). Entendo também, no entanto, que é muito sintomático que nos dias/semana da visibilidade LÉSBICA tenha pipocado e ainda esteja pipocando a visibilidade BICHA (junto, claro, da INvisibilidade Trans e da invisibilidade lésbica cis ou trans). Essa foto é antiga, mas pedi pra amiga que ahaza no photoshop, a Nina Moraes pra repaginar e fazer um contraponto pra afirmar que, não só bicha, mas SÓ TEM SAPATÃ NESSA CIDADE.

Não sei exatamente quando a história do "só tem bicha nessa cidade" foi efetivamente publicada (lembre da história aqui). Mas a buemba caiu no meu colo no dia 29 de agosto, que vem a ser, ironicamente, o Dia da Visibilidade Lésbica. Digo ironicamente pois, em uma sociedade centrada na figura do homem, a internet em peso fez uma campanha com a hashtag #sótembichanessacidade. E se falou de bicha o dia inteiro. E bicha aqui e bicha ali.

Claro que um lado meu, militante, e cada vez mais interessado pela literatura queer, achou muito legal ver os gays assumindo o termo bicha e subvertendo-o. Porém, convenhamos que tínhamos 364 outros dias no ano para isso. Mas, como eu disse no início do texto que eu gosto dos meandros da sincronicidade, eu vou evitar cair no pensamento de que isso foi uma forma consciente de abafar o dia da Visibilidade Lésbica.

Eu disse conscientemente.

Porque, a verdade é que, diariamente, não há igualdade de vozes dentro do movimento LGBT (e você, leitor, pode se sentir bastante confortável de inserir as letras que bem entender aqui). Aliás, é importante lembrar que o L passou à frente da ex-sigla GLBT justamente para dar voz ao movimento de mulheres - afinal, se você localiza topograficamente uma letra antes da outra, por mais que acreditemos na horizontalidade do movimento, a verdade é que, implicitamente, você está construindo uma hierarquia. E, se estamos travando uma batalha por uma Igualdade que se pretenda real, você tem de dar mais oportunidade àqueles que estão em um nível mais profundo de desigualdade. Logo, não se trata de uma simples mudança de posição das letras - é conceitual, e eu concordo plenamente.

Claro, se tentarmos fazer uma genealogia do motivo que faz com que a letra L tenha vindo à frente, poderíamos tirar da conta do movimento LGBT e trabalhar apenas com as distorções historicamente criadas entre os gêneros masculino e feminino. A nossa sociedade foi construída com base na ideia da superioridade masculina. O problema é que esta questão entra no movimento LGBT e o contamina: se você virar para uma pessoa "média" e falar a palavra "gay", ela vai remeter imediatamente a dois homens - muito embora o termo gay se refira tanto a homens quanto a mulheres. Quando você fala em casamento entre pessoas do mesmo sexo, grande parte das imagens que circulam na internet é de dois homens. Eu sugiro o exercício de buscar por "casamento gay" no Google Images: minha pesquisa retornou oito casais masculinos contra apenas dois femininos. Se você vai até à mídia para fazer a mesma investigação, você vai se lembrar que a grande parte dos personagens homossexuais são... homens. A própria celeuma com o beijo gay se deu num beijo protagonizado por dois homens e, vejam só, quando o beijo foi entre duas mulheres, a comoção social foi infinitamente menor.

E aí temos as seguintes opções: 1) falar que "a culpa é da sociedade centrada no homem"; 2) falar que "não, é impressão minha, isso não existe, e, ah, se não tem tanto preconceito assim com lésbicas, é porque elas estão mais naturalizadas na sociedade".

Se você escolheu a opção 2, queridx, você está apenas escolhendo a opção 1, só que está mais contaminadx com a ideologia histórica: lésbicas estão supostamente mais naturalizadas porque elas foram transformadas em fetiche masculino - e, como estão servindo ao deleite do homem, logo, é um casal mais, digamos, "aceitável".

E falar em estar "naturalizado" e "ser aceitável" é cruel, porque você está chamando x coleguinha ao lado de anti-natural e inaceitável. E eu escolhi os termos de propósito.

O convite deste texto não é para deixar de debater uma notícia que, infelizmente, teve a grande divulgação nas redes sociais num dia em que se deveria estar problematizando o papel da lésbica dentro da sociedade (e até mesmo dentro do movimento). O convite é para o movimento deixar de se centrar no homem. Já que a notícia foi publicada, nós perdemos uma grande oportunidade de levar diversas questões à discussão.

O movimento GGGG (sim: de GAY GAY GAY GAY) foi egoísta, sim, por ter feito um grande carnaval sobre o #sótembichanessacidade e não ter problematizado a questão das outras letras do movimento LGBT.

O movimento GGGG foi estúpido e cruel por ter levado apenas a palavra bicha em consideração. Entendo que tenha sido a frase utilizada pelo senhorzinho-homofóbico-na-fila-do-Bobs, mas, se preciso lembrar a todxs, a primeira ofensa foi disparada contra x atendente transexual. Mas, obviamente, o senhorzinho-homofóbico-na-fila-do-Bobs foi preso por desacatar uma autoridade abertamente homossexual. Em suma, o senhorzinho-homofóbico-na-fila-do-Bobs foi apenas homofóbico: ele não foi transfóbico - que é um problema social completamente diferente, com outras implicações - a começar pelo óbvio: a homofobia trabalha com a orientação sexual; a transfobia trabalha com a identidade de gênero.

O movimento GGGG é formado por homens.

Então guardemos alguma coerência entre nossos CDs da Lady Gaga escondidos na gaveta de jockstraps: se não queremos ser vítimas de homofobia, não sejamos machistas.


sábado, 30 de agosto de 2014

Ainda dá tempo? Sobre Marina no Jornal Nacional: uma reflexão.


Eu pretendo ser breve, porque estou correndo sérios riscos de ser chamado de ANTIMARINA daqui a pouco. Na verdade, eu tinha até em mente o que eu ia falar - apenas uma reflexão sobre a entrevista que Marina Silva concedeu ao Jornal Nacional no último dia 27. E eu queria exemplificar com o vídeo mas, corroborando o meu texto anterior AND a mancada que ela deu com a questão LGBT no programa de governo dela (leia aqui), vou ter de estender um pouco mais.

1º - A meu entender, a entrevista da Marina não serviu para ela falar muito e falar bem sobre o programa de governo dela. Não. Aquilo foi uma performance para mostrar para o brasileiro o quanto ela é supostamente mais firme como a Dilma. Afinal, ela é uma mulher negra acreana e, supostamente, tem muito o que provar para a sociedade. Na entrevista da Dilma, ela foi silenciada o tempo inteiro pelo Bonner e pela Poeta. Já Marina Silva falou muitos nadas e obrigou a dupla de jornalistas a aceitarem que ela queria falar. O "a senhora tem um minuto e meio para expor seus projetos" foi CONSTRANGEDOR. Tem um quê argumentativo muito sério nesse vídeo, que vai muito além da oportunidade de criar um MARINEITOR - ela falou muito e, melhor: falou - coisa que a Dilma não conseguiu fazer (por pressão da Globo, e não por falta de competência dela, obviamente). Mas, muito mais que expor as ideias políticas, as entrevistas são um grande teatro para angariar eleitores. Não se esqueçam isso.

2º - TODOS os vídeos da entrevista da Marina no Jornal Nacional foram excluídos do Youtube. Pode ser questão de direitos autorais? Claro. Mas tem a entrevistas de outros candidatos no ar. Estranho?

3º - Gente, pelo amor de Deus. Parem de mendigar casamento. Sério. Olhem o histórico de avanços do movimento LGBT nos últimos 12 anos (que inclui o casamento, btw) e parem de acreditar nas promessas da Marina. Ela está completamente imbricada a grandes personalidades religiosas e ela NÃO. VAI. ROMPER. POLITICAMENTE. COM. ESTAS. PESSOAS. Fim.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

6 am

O tiro de festim não saiu pela culatra
Muito estardalhaço para pouco estilhaço 
Eu quero cacos de vidro neste fuso desajeitado
E, com a luz do sol, fazer um caleidoscópio de sua frustração. 

Eu realmente não me importo.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Hello Kitty e o controle dos corpos.



Uma das crenças mais importantes de toda a humanidade acaba de cair: Hello Kitty é um ser humano, e não um gatinho, como todo mundo cresceu acreditando (inclusive a Avril Lavigne, aparentemente, com o seu indecoroso MEOW aos 2:30' dessa música estúpida, mas que serve de trilha sonora para esse texto). Percebi uma certa comoção no Facebook hoje e, claro, eu tinha que pensar muito além do que a divulgação dessa notícia poderia predizer. Portanto, vou me dar o direito de escrever algumas linhas sobre algo que eu sequer confio (por que, francamente, quem consegue lidar com um personagem que não tem boca?)

O que me intriga não é a declaração bombástica da Sanrio, empresa criadora da personagem. Na verdade, eu posso falar claramente que estou pouco me lixando para o fato de Hello Kitty ser uma menininha*, e não um gato, uma centopeia ou um dinossauro. O que, aliás, deveria ser a saída mais adequada para quando lidamos com aquilo que desconhecemos ou que, por qualquer motivo, nos causa estranheza.

A matéria que linkei acima fala que "Contrariando o consenso de toda uma geração, a mundialmente conhecida personagem Hello Kitty não é um gato, mas uma menina". E daí eu me questiono: quem foi que deu autoridade para toda uma geração negar a natureza humana da personagem e relegá-la ao papel de mero bicho de estimação?

Ah, por que ela tem bigode?
Por que a orelha dela é pontuda?
Por que ela é branca e passa a impressão de ser felpuda?
Ou seria porque ela simplesmente não se enquadra dentro da nossa visão média de... ser humano?

Pode parecer brincadeira, mas a questão é bastante séria. É séria, e tem gente se debruçando de verdade numa atividade de desconstrução de determinados padrões (e um livro interessante que estou lendo sobre o tema pode ser encontrado neste link). Porque, sabemos, a mesma concepção do "ser humano" que nós temos hoje e que nos autoriza a desacreditar a Hello Kitty enquanto ser humano, é a concepção que autoriza toda a coletividade a rejeitar o reconhecimento de, por exemplo, transexuais, nos gêneros em que eles, psicologicamente, se veem. E, por favor, não diminuam este fato: estou falando de milhares de transexuais, travestis, e quaisquer outras pessoas que não se enquadram no binarismo de gênero (homem x mulher) que são impedidas de fazerem as coisas mais simples do mundo, como, por exemplo, frequentar um banheiro público.

E, se quiserem que eu vá além, é também a mesma concepção que impede que mulheres decidam determinadas ações de suas vidas - como aborto, peso, etc. - afinal, nos foi empurrado goela abaixo um padrão X e que fazem de nós (alguns mais que outros, é verdade) vítimas e, ao mesmo tempo, algozes.

Fica então a reflexão - que começa com uma frivolidade, como a história da Hello Kitty, mas que pode ser amplamente utilizada em nossa vida: se olharmos para o lado e "não entendermos" o que estamos vendo, não podemos tentar "colocar" aquela pessoa numa prateleira que nos remeta a algum padrão já conhecido. É feio, é falta de respeito com o coleguinha e é burro. Tentemos sempre desconstruir essas imagens que temos preconcebidas em nós, principalmente no que toca ao corpo alheio, já que vivemos em uma sociedade obviamente binária (homem x mulher, alto x baixo, magro x alto).

Nossas percepções não são nossas: elas são fruto de uma história opressora, que diminuiu e diminui todos aqueles que se encontram além ou no meio destas classificações primárias que aceitamos e reproduzimos constantemente.

* Sobre a Hello Kitty ser uma menininha: vejam que aqui temos mais um padrão que precisa ser destruído: ela é uma menininha que usa rosa e tem um lacinho na cabeça. E tem um bichinho de estimação chamado Charmmy Kitty. Convido vocês a problematizarem o bigode da Hello Kitty. E, mais: e se ela quisesse que o seu animalzinho se chamasse ALEXANDRE FROTA? Por que não poderia?

Marinismo, agenda gay e eco-b(a)itolagem.

Marina Silva, candidata à Presidência da República após o trágico acidente envolvendo Eduardo Campos, é evangélica. Todo mundo sabe disso. E todo mundo sabe que não é correto julgar uma pessoa com a história política da Marina apenas pela sua religiosidade.

O problema, na verdade, nem é esse.

Ultimamente, acompanhando fóruns no Facebook de militância LGBT, tenho visto que muitas pessoas passaram a fazer campanha em favor da Marina, porque ela, vejam bem, passou a defender o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, assim como a criminalização da homofobia - mesmo que um dia tenha se declarado contrária a estas pautas.

Abaixo a imagem da equipe que assessora a Marina nas redes sociais, e aqui, um link sobre a mudança de pensamento (que, diga-se, é válida, é humana, e que pode ocorrer a todo momento):


Minha primeira implicância: a passagem "O Supremo Tribunal Federal já deu a essa união o estatuto de casamento civil. A questão legal sobre o tema está, portanto, resolvida no Brasil.". Não, quem deu o caráter de casamento civil foi o Conselho Nacional de Justiça, com base na Resolução n. 175, de 14 de maio de 2013, aprovada durante a sua 169ª Sessão Plenária. Isso, inspirado pela histórica decisão do STF sobre a União Homoafetiva, ao julgarem a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132. Ambas, tanto a Resolução, assim como a decisão do STF, possuem efeito vinculante, muito bonito, todo mundo é obrigado.

Até que alguém mude de ideia.

Não existe qualquer segurança jurídica no que acima foi resolvido: o STF pode, a qualquer momento, rever a sua posição, e o CNJ, se quiser, revoga a Resolução. Logo, não há uma "questão legal resolvida no Brasil". E, aos que defendem a pauta do casamento homoafetivo, igualitário, ou qualquer outro nome que lhes seja mais adequado/bonitinho, há ainda uma luta a ser empreendida em prol de um diploma legal que confira ao tema uma segurança jurídica maior, que não esteja passível de mudanças de acordo com a composição do STF e CNJ, e nem dependente do humor dos ministros que compõem os mesmos.

Esse foi o primeiro ponto.

O segundo é uma crítica pessoal em relação ao que Marina está defendendo. De um lado, o casamento igualitário (nome oficial empreendido pela campanha capitaneada pelo Jean Willys) não necessariamente contempla todas as pessoas contidas no universo LGBT[insira-aqui-todas-as-outras-letras-possíveis]. Isso porque, parte da teoria por trás das guei simplesmente não quer o casamento, por entendê-lo como um instituto de natureza eminentemente heteronormativa e que, por isso, deveria ser rechaçado por uma comunidade que surge justamente como uma contracultura. Ora, se eu surjo enquanto movimento contestando determinado ethos , me soa razoável que eu conteste todo o ethos, e não tente assimilar apenas o que eu julgo interessante, ainda mais quando este interessante é puramente heterossexista e transfere para o Estado o controle dos corpos. Se eu contesto a heternormatividade, não posso querer viver a magia do casamento - a cerimônia -, até porque isso vai me fazer lidar com os pesares do mesmo - a burocracia, a imposição da monogamia, a imposição de tipos X de composição familiar (e me desculpem os constitucionalistas, mas é muito bonito falar em ~rol exemplificativo~ do art. 226, mas o conceito de família ainda está muito contaminado por determinados padrões, tanto que as famílias hoje aceitas pelo direito brasileiro são todas oriundas de algum "defeito" da família matrimonial: a monoparental é a cristalização de uma situação de fato em que um dos pais falta; a união estável é a cristalização de uma família que não deseja o casamento).

De outro lado, há a questão, não menos polêmica, da criminalização da homofobia. Me soa um pouco óbvio que todo crime deve ser punido - respeitando-se, claro, toda a dogmática criminal, os direitos fundamentais, etc., etc. Porém, no Brasil, há uma clara política de "sedução" do Direito Penal. Tudo aqui vira lei criminal. Muito, talvez, pela inspiração pedagógica da norma criminal: se existe um fato típico, não vou nele incorrer, pois posso sofrer as consequências da lei. Só que muito pouco se investe no caráter punitivo - e, além, ressocializador - da mesma norma. O sistema prisional brasileiro é a epítome da falência e, como se já não bastassem presídios cheios, sem infraestrutura e a assombração do lema "bandido bom é bandido morto" e que, por isso, se torna até interessante jogar os "bandidos" em algum lugar fétido, porque ao menos assim ele não está na sociedade cometendo crimes, há ainda uma evidente questão racial nas persecuções criminais. Quem é preso no Brasil é preto e pobre.  Segundo Timothy Ireland, representante da área educacional da Unesco no Brasil, dados do Ministério da Saúde indicam no perfil da maioria dos presos no Brasil, são de jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa escolaridade, são 73,83% do total da população carcerária. Mais da metade 66%, não chegaram a concluir o ensino fundamental (fonte da violação de direito autoral). Há, portanto, que se ter cuidado ao falar da criação de mais uma lei penal. Acho que deve existir um engajamento sim em relação ao combate à homofobia (e eu seria um completo idiota em negar isso, afinal, posso tomar uma lâmpada na cara a qualquer momento, em especial agora que estou malhando mais as pernas para poder usar leggings neste verão), mas a criminalização em si tem que ser debatida em todos os seus aspectos, e não apenas jogada como moeda de troca de votos - vai existir um programa pedagógico aliado? Será investido em capacitação policial e em aparelhamento estatal, aos moldes da Maria da Penha? Teremos medidas socioeducativas adequadas?

Um último ponto, que dá menos dor de cabeça como o anterior é: Marina possui um histórico, muito bom, no Meio Ambiente que, aliás, é um direito humano e que merece a máxima atenção do Estado. Porém, estamos falando de UM direito humano, dentro de tantos outros. E, se for para sermos bem materialistas, é UM ministério dentro de tantos outros que merecem atenção. As considerações finais da Marina me deixaram um pouco preocupado com um eventual governo dela: ela foi enfática quando afirmou que defende saúde-educação-segurança pública (e não falar do óbvio seria um crime) e infraestrutura para atender as necessidades estratégicas (...) para que a nossa produção agrícola não tenha o prejuízo que tem. E aí ela emenda com a Justiça Social. Argumentativamente falando, o que ela deu mais atenção à questão agrícola e concluiu com o tema da justiça social. Ou seja: choveu no molhado e reafirmou o que sempre defendeu: colocou a questão ambiental, em sentido lato, no centro de tudo. E, reafirmo, por mais importante que isto seja, não há como, num país do tamamho do nosso, ser este o epicentro de um programa eleitoral. E devo lembrar que Marina está assessorada: o discurso final dela não surgiu do nada. É, definitivamente, o seu programa - que, aos meus olhos, é bitolado.

O que eu defendo é: temos o mês de setembro inteiro para lermos sobre nossos candidatos e formar uma mentalidade coesa para o mesmo, para que nosso voto seja inteiramente consciente. Se você é eleitor da Marina, o seja conscientemente, e não porque ela prometeu um ou dois direitos para a comunidade LGBT. Como disse em outro texto meu, um país não é feito apenas pela agenda LGBT. Devemos, sim, ser contemplados, e há uma militância muito grande em prol disto. Mas, se dita agenda não é a única que deve compor um programa de governo, ela não pode ser a única razão para concedermos um voto a um candidato. Existem inúmeras questões que o Brasil precisa trabalhar e é nosso dever, enquanto portadores de um título de eleitor (e nem estou falando em "cidadania"), estudar e conhecer sobre tudo para que possamos, ao menos, nos lembrar em quem votamos nas últimas eleições, caso indagados em 2018.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

porta aberta, janela fechada.


Havia uma janela, mas sempre houve uma porta.

A janela, apesar de aberta, era apenas aquela abertura que, para que eu pudesse ingressar no outro cômodo (um pouco mais cômodo), eu teria de pular, gatuno e sorrateiro, roubando um lugar que sequer é meu. Não é meu, porque não contempla os meus ideais. Também não é meu, porque não me permito invasões na calada da noite. Muito trabalho para pouca recompensa. Dali eu não tiraria nada. Portanto, era mera invasão. E, num dado momento, eu não quis mais.

E a porta, eu costumava bater com a minha cara nela. Mas batia cara nela porque eu tenho essa péssima mania de socar pontas de facas e minha testa em quinas de mesa. Apenas para tornar a experiência desagradável, neste pensamento provinciano que sempre me acompanha de que eu preciso honrar o papel colado na parede e o destino tecido por terceiros para... mim. Talvez ela estivesse fechada, mas bastava girar a maçaneta, abrir meu melhor sorriso e respirar o ar puro que vem lá de fora (e o quintal é arborizado e não cinza como eu supunha). Quem diria.

No momento que eu fechei a janela, percebi que não poderia viver em clausura.

A maçaneta girou sozinha com três convites para ladrilhar com pedrinhas de brilhante um amanhã tão instável como o de ontem, mas, que, por ora, me permite uma esperança.

Pra que dizer não, com tantos sim dedilhados em violas mansas?

domingo, 24 de agosto de 2014

cafetina



Não me presto a conchavos.

Eu, que tenho pavor da formalidade do tapete vermelho e da gravata que enforca e faz presa na epiglote a fumaça mal inalada do último cigarro, não tenho o hábito de virar desengonçado o Chandon das parcerias interesseiras e desinteressadas.

O que me move, além das pernas ligeirinhas, 14 quilômetros por hora rumo a lugar nenhum, é a verdade - e não toneladas de kilobytes jogados na masmorra verde da discórdia. E, por verdade, entendo a desconstrução de tudo aquilo que meus opositores hoje trabalham arduamente para manter (e não há nada de verdadeiramente libertador em recatar o decote e glorificar o falo).

Por isso, me jogo.

Minha ferramenta política é o meu corpo.

Porque, se a coletividade na qual creio é minha cafetina, sinto-me confortável em ser a puta do meu próprio destino. E hoje eu não vou dar. Eu vou distribuir.


roda da fortuna.


A melhor parte de se abrir e fechar portas é perceber a mobilidade das coisas e a volatilidade do tempo. Quando o relógio não é capaz de acertar seus próprios ponteiros, jogamos uma tinta de invisibilidade nas palavras, nas ações, no ontem e no hoje; para o amanhã, resta acelerar o movimento das pernas e tentar imprimir letras e sentidos na tela em branco que guarnece nossa existência.

Como trilha sonora, a roda da fortuna derrapando neste tabuleiro de xadrez do qual somos, tão-só e jamais sós, peças.

morro por conceição.


A rua, por si só, já era bastante íngreme. 

Mas, talvez em razão de meu ponto de vista, a subida era uma ideia quase insuportável, deitado no chão e observando pessoas andando - pela primeira vez - sem pressa, buscando a fortaleza de seus lares ou apenas para contemplar a ponte que liga o lá com o cá, tão pequena quanto a distância entre meu indicador e os rostos que passei a inquirir.

Grato aos céus pelo conforto do tecido leve, eu preferi, por bem, me permitir rolar, distanciando-me das duas ou três pedras com quem eu havia mantido um relacionamento perfeito durante quinze minutos: naquele momento, apenas elas me entendiam. Mas, ao ver que eu estava ficando tão cinza e rígido como elas, o adeus me pareceu o verbete adequado para a minha própria felicidade.

Porque não há, nesta estratosfera, uma justificativa plausível para me manter imóvel, receptáculo de solas de sapatos mais caros que aquilo que posso pagar e suporte de línguas que só fazem chicotear - ao invés de entrelaçarem-se umas às outras num ato concreto de amor.

Não quero ser cinza no hoje se sequer pretendo ser mármore amanhã.

Talvez esta tenha sido a grande Conceição - e por ela me apaixonei perdidamente. Ao me afastar do bucólico e reencontrar o asfalto, uma grande placa de sinceridade me foi estendida como que em um ato público de boas-vindas. Esvaziei os bolsos dos pedregulhos que lá ainda dormiam e, com os pulmões cheios de um novo ar, inflei até o mais alto de mim mesmo e, humilde, agradeci. 

domingo, 17 de agosto de 2014

if there's a future we want it now.

eu poderia contar a quantidade exata de cigarros fumados pela metade desde a última vez que fiz lágrimas suicidarem-se do alto precipício do queixo ao mais sólido chão desta folha branca. eu poderia inclusive publicar em algum jornal de grande circulação quantas vezes eu roí as unhas entre o último verão em que eu bradava uma magreza esquelética e o outono cujas folhas insistem em irritar a pele da minha coxa flácida. mas eu jamais poderia contar, com riqueza de detalhes, o desgosto.

se ao menos eu pudesse me alugar.
mudar de lugar.
deslocar.
tresloucar.

afinal, se eu não dou conta destas quatro paredes, para que pendurar quadros em no mínimo cem metros quadrados de desconforto?

afinal, se eu tenho medo de perder toda esta parafernalha que me guarnece, para que estar vinte e quatro horas por dia conectado a uma realidade em que eu apenas posso ser eu mesmo se eu esconder de um seleto grupo de amigos aquilo que eu penso?

afinal, que tipo de polis é essa em que eu sequer posso esbravejar da forma que eu fui ensinado - com calos, falos e embalos de um sábado à noite não dormido porém sem diversão?

não sou obrigado a mergulhar em sua esponja de hipocrisia e sair amarelo, inchado e cheio de gordura.

não sou obrigado a lidar com dramas adolescentes além daqueles que eu ostento.

eu sequer sou.

obrigado.

domingo, 22 de junho de 2014

goodbye k

cheia de sofre-guidon
a bicicleta ride and ride again
e vê o carinha na esquina
lançando soon a pergunta: whatchugonnadoon fried day?
o boi fala "nada porque não sou fri"
"not fri boi"? solta a bicicletinha incré-dolar
"so free"
e a bye-ke continua riding riding.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

acapella (?)

dissatisfactions all served in a cold feast
white dishes stained in red
if these tears are starting to petrify
the lump in my throat is clearly screaming why

misjudgements of an ancient beast
wearing silk on its deathbed
if these veins are exploding tonight
this cancer seems to be the oldest friend of mine

telephone rings lost in an empty street
last days hung on a thin thread
if the rain falls like a sadness cry
these boots are heavy enough and i can't fly

sábado, 18 de janeiro de 2014

No final das contas, é muito estranho se sentir vivo. Até agora não consegui decodificar as luzes e o sorriso. Porque, eventualmente, era tudo a mesma coisa, e o calor ao redor me impediria de fazer um juízo racional no velho estilo "colocar tudo em seu devido lugar". A cerveja estava gelada e meu espírito era artesanal.  A tequila não desceu rasgando mais do que o ar impuro que eu respirava. Por sorte, o chão era bastante firme e as paredes me escoraram de cometer um erro.  Mas... ser genuinamente feliz na fugacidade do strobelight é errado? Querer fugir do ar-condicionado e ver as estrelas depois de uma pancada na cabeça é um pecado? Rir ironicamente da sincronicidade do VJ que projetou Smiths na parede e fumar trinta cigarros de desespero do querer-agora-e-não-me-importa-atropelar-o-universo (cadê meu maço de ontem por falar nisso) é contra a moral e os bons costumes?

Pássaro proibido de sonhar. Misturo Caetano e The Cure enquanto minha irmã dorme na sala.

Aqui, a lombar doi mas eu sonhei acordado.