sexta-feira, 22 de maio de 2015

Britney careca e ciclista esfaqueado: uma lâmina de dois gumes.

Eu estava tentando não me manifestar sobre o caso do ciclista assassinado na Lagoa. Muito talvez pelo amor que recebi ontem em meu aniversário, hoje acordei namastê pra caralho, abraçando árvores, falando com duendes e acreditando em fadas. Mas não dá. Primeiro porque me dou conta que 70% de todo o amor que foi despejado em cima de mim é JUSTAMENTE por eu escrever, por eu debater, por eu perder horas a fio falando sobre os mais variados assuntos. E, depois, porque vendo o que a galera escreve nas redes sociais, sem o menor comprometimento com uma construção REAL dos direitos humanos, chega uma hora que a panela de pressão explode.

Primeiro item: os direitos humanos não foram feitos para humanos direitos. Acabei de ler uma insinuação desta na página de uma advogada ligada à militância LGBT. Pelo menos, aquela militância institucional, que vê o LGBT sendo L e G, não compreende o B, e patologiza o T. Nada de novo, exceto a possibilidade de angariar um nicho mercadológico-jurídico novo, mais escrituras de Uniões Estáveis, e, com um pouco de sorte, mais dissoluções lá na frente. Porque divisão de patrimônio é que dá dinheiro, não é mesmo? O mesmo pink money de sempre, mas só com uma roupagem.

Os direitos humanos foram criados para os humanos tortos. Isso mesmo. Aqueles humanos que, por serem dissonantes de determinado padrão hegemônico, são escrachados, ridicularizados, marginalizados, escravizados, comercializados. È pra bicha escandalosa, pra sapatona desvairada, pra travesti que se prostitui, pro preto-pobre-favelado (se entrar pro crime, melhor ainda), pra mulher que apanha em casa, pra mulher que enfrenta o mercado de trabalho de maneira empoderada. Então não mete esse caô de "ah, eu, pobre classe média sofredora, que pago impostos que não são revertidos pra mim". Porque eles são. Não da melhor maneira, mas quando você compra um carro zero com isenção de IPI, bem, alguém está pagando, não é? Quando se vota um projeto de lei para anistiar planos de saúde, bem, esse dinheiro está saindo de algum lugar, não é? Mas certamente não é do bolso vazio daquele que anda de ônibus lotado todos os dias e que, quando fica doente, não tem o direito de sequer um leito para se deitar e tomar remédio. Eu quero que os humanos direitos se contorçam de ódio a cada vez que uma bandeira de RESISTÊNCIA, de RE-EXISTÊNCIA, é hasteada por aí.

Segundo item: No dia anterior ao meu aniversário, eu me reuni com alguns amigos e tomei umas muitas cervejas. E tive uma epifania torpe, quase escatológica: o assassinato do ciclista (e eu ME RECUSO a chamá-lo pelo nome próprio enquanto diariamente inúmeros brasileiros são enterrados como indigentes - vale lembrar as travestis que não têm seu nome social respeitado nem mesmo no pós-morte, e os milhares de pobres que jamais vão alcançar a primeira página de um jornal quando massacrados pelo Estado - e não estou falando de casos emblemáticos como Amarildo e Cláudia. Estou falando do DIARIAMENTE), dentro da minha cabeça, é o mesmo episódio de quando Britney Spears raspou a cabeça.

Me explico: dentro do imaginário social doentio-capitalista-pra-caralho, esteta até morrer dos Estados Unidos (estetas unidos?), é comum e motivo de orgulho para muitos pais inscrever suas filhas em concursos de mini-misses. O que mais tem na TV é reality shows mostrando essa mania torpe de destruir a infância das crianças em nome de um reconhecimento econômico posterior. Veja, e isso é uma CARREIRA. Britney iniciou logo cedo, trabalhou na Disney, lançou primeiro disco e, em 2007, pá, perdeu a linha, bebeu mais que devia, fumou um cigarrinho do capeta (provavelmente, né mores?) e raspou a cabeça.

Isso me soa como um desequilíbrio estrutural do próprio sistema - e é aqui que eu comparo os dois episódios. Vejam: se eu parto de um princípio em que o "natural" é uma criança-estrela crescer e ser a "miss american dream" (como Spears mesmo se auto-proclama em uma de suas músicas), quando ela faz qualquer coisa diferente do programado (programado MESMO), é porque algo deu muito errado. A pressão midiática, a retirada compulsória de uma infância, um casamento monitorado a todo tempo, enfim, fez com que ela perdesse completamente o juízo (ao menos aquele estabelecido por padrões psiquiátricos majoritários - até pq eu não vejo problema nenhum em usar drogas e raspar a cabeça, mas enfim).

No outro giro, o ciclista estava gozando de sua vida que foi programada para ele, morador da Zona Sul e habituée da Lagoa. Notem que isso não é um ataque pessoal: a própria esposa disse ser contra a redução da maioridade penal; eu não o conheço, não sei os pontos de vista dele sobre nada. É apenas a figura que ele representa, o recorte social que é protegido a todo tempo pelo Estado: a classe média (aquela verdadeira, aquela de várzea, aquela de raiz). Quando vem um jovem negro pobre marginalizado e, hoje, menor infrator, ele está se rebelando contra o status quo, ele está rasgando um script idealizado há tanto pelos detentores do poder. Ora, como podemos chamá-lo de criminoso se ele não passa de uma testemunha oprimida do Contrato Social? Não é aqui embaixo que as leis são diferentes: é lá em cima, onde esse garoto testemunhou mortes desde a infância, abandono familiar E governamental (como foi denunciado hoje pelo Jornal Extra). O menor é nosso anti-heroi - ele busca apenas o egoísmo da sobrevivência. Mas quem falou em egoísmo mesmo?

Conclusão: Acho que as pessoas perderam completamente a capacidade de interpretar um texto. O mundo - repito - é tomado de discursos de todas as ordens possíveis, mas apenas vendo de longe é possível apreender a bigger picture, que, para mim, compreende a interpretação adequada de todos os discursos. Não tem problema ir para um lado mais conservador: eu defendo seu direito de pensar equivocadamente. Mas o faça de maneira fundamentada, com bons argumentos, e não com intuito de preservar apenas o seu egoísmo (ah, sim, eu quem falei sobre egoísmo) que você brada, heroico, enquanto um suposto humano direito. Volte três casas no jogo da vida, compreenda, coloque-se no lugar do outro, perceba as diferenças em si que cada ser vivo possui e apenas depois disso você coloque seus dedos furiosos sobre um teclado de computador para vociferar um ódio que se presta apenas para fomentar mais o abismo social existente entre os vários recortes que existem por aí. E esse raciocínio, essa estratégia vale para QUALQUER opressão. Inclusive a que você deve experimentar diariamente, mas que, com o manto de cidadão de bem que o poder te emprestou momentaneamente para falar merda, você não consegue perceber.

Em suma: enquanto você não fizer isso... sua vida será um lixo.

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