sábado, 16 de maio de 2015

CHILIQUE DEFINITIVO: leave banha alone (ou: Gordofobia é quase amor?)

Saí hoje do plantão e, como de costume, peguei o celular enquanto esperava o 332. Não gosto de ler no ponto, porque eu sou meio distraído e, se eu perco o ônibus, só depois de meia hora vem outro. Morar longe dá nisso. Então, normalmente é a hora que eu dou uma passada nas produções da madrugada: fotos de festas, amigos bêbados, mensagens que não podem ser codificadas e, às vezes, alguns compartilhamentos bobos, sem nenhuma pretensão. Além disso, feeds de páginas gringas que, dado o fuso horário, estão em pleno funcionamento.

Cinco postagens sobre emagrecimento. Cinco. Da página G (de onde eu não espero nada de edificante, anyway) a um aparelho milagroso que transforma a gordura abdominal em bateria para o celular (enquanto queima a gordura, diz a publicidade), todas as postagens enalteciam o corpo magro. Revi a origem das publicações para saber de onde vinham, e nenhuma página era relacionada a fitness.

Porque i've been there, done that. Quem me acompanha sabe que eu passei dois anos frequentando academia e com alimentação bastante restrita, até que eu alcancei o manequim 38, a camisa P, suava menos e era muito mais passável aos olhos do júri social. Adoraria ter medido a diferença em likes do Tinder, mas eu não dispunha de tal tecnologia na época. Então, eventualmente, poderiam ser postagens relacionadas a fitness, pero no: duas postagens vinham de amigos, três postagens vinham de página.

Há algum tempo atrás - na época da dieta - escrevi um longo texto justificando que eu havia me libertado dos grilhões estéticos e, naquele momento, eu me proclamava apenas um guardião da boa saúde (escrevo isso enquanto revezo entre coxinhas, quibes e bolinhas de queijo): àquele tempo, eu já não era trouxa pra acreditar na imposição do capital para o corpo perfeito, mas eu fazia aquilo pra manter os exames em dia e soar exemplar para qualquer jaleco-branco que viesse me mensurar.

Mas, em primeiro lugar, nunca estamos livres completamente, não é mesmo? Ao menos, não em se tratando do inconsciente. Vejam: eu ia diariamente à academia, era exposto a corpos esbeltos, a corpos grandes, a corpos suplementados e anabolizados. Nunca comprei uma camisa da Nike para correr porque eu acho um disparate gastar três dígitos em algo no que vou SUAR, mas gostava de estar sempre impecável, apresentável, para os colegas da academia que eu sequer trocava mais de três palavras. Torrava cerca de quatrocentos reais ao mês em suplementos. Cheguei a tomar um "anabolizante levinho", tudo muito estudado, tudo muito bem orientado, "só pra dar um gás". Na saúde é que não foi.

Por vários motivos, que vão desde ter morado praticamente ao lado de um dos meus bares preferidos, até uma mudança repentina, drástica e dramática (como tudo na minha vida), eu promovi um apocalipse no meu corpo (acabaram os salgadinhos, mas penso em abrir a despensa e catar um chocolate de lá) e estou hoje quase com o mesmo corpo que estava antes de iniciar a dieta. Em termpos de peso, porque a postura é outra, afinal, a academia realmente promove essa mudança. Mas já passei por isso antes e certamente daqui a pouco minha postura vai estar novamente a mesma. E eu, bem, eu continuo sendo eu.

Mas saindo da órbita do meu umbigo - este prefácio foi apenas para demonstrar que eu passei pelo que estou falando, o fato é que, dentro do discurso do corpo magro, apenas duas vertentes fundamentais são utilizadas para justificar a exclusão das milhões de pessoas (que são maioria) que não ostentam o corpo perfeito: de um lado, a ditadura do corpo; de outro, a saúde.

A ditadura do corpo não pode vencer. É um argumento raso. Presta apenas a atender ao capital: pessoas magras sentem-se à vontade de comprar mais roupas, logo, consomem mais; essa ordem das coisas se dá, claro, por termos adotada uma vestimenta que é ditada pela moda, que desfila corpos anoréxicos em passarelas que permitem o caimento dito perfeito de qualquer tecido. Quando falamos em inclusão, a moda vem e lança uma modelo plus size que, na verdade, só tem mais bunda. Para os homens, ainda que os termos sejam mais flexíveis (vejam a TENDÊNCIA SEXUAL de agora, o Dad Bod - homens com corpo normal, mas que a barriga não estrapola o limite da "barriguinha de cerveja"), o mundo da moda também é dramático: six-packs enfileirados prometendo ao usuário daquela roupa/marca sucesso afetivo, sexual e profissional. Qualquer pessoa que não esteja dentro destes padrões (ou das exceções que o próprio capital enuncia quando seus padrões entram em colapso), é automaticamente jogada para escanteio, ridicularizada, tratada como sub-humana: incapaz de se relacionar, de ascender profissionalmente, e, em casos mais drásticos, de ser limpa. Não foi Nelson Rodrigues quem falou que a gorda tem varizes e sua azedo?

Mas aí vem a tábua de salvação retórica do padrão hegemônico: a saúde. A medicina, por ser tão cara à humanidade, a zeladora da vida, cujos representantes na terra são pessoas sem doutorado a quem chamamos de doutores, vem e sentencia que devemos ser magros. Colesterol, riscos vasculares, complicações ortopédicas, tudo é utilizado para salvar uma vida gorda e, o mais importante: controlar uma vida gorda.

Não é de hoje que a Medicina controla a vida das pessoas. E quando falo em "vida", não estou falando apenas de seu aspecto material, aquela coisa que acaba com a morte; estou falando sim dos comportamentos, pensamentos, posicionamentos. A medicina é, muito antes do conjunto de práticas para a melhoria da saúde humana, um discurso político. Em um tempo em que mulheres não tinham direito a nada além de casar e ser absolutamente submissas ao marido, o comportamento sexual das mesmas era controlado sob o fundamento da histeria. A loucura, do ramo psiquiátrico, pode simplesmente ser uma vontade de a pessoa não se adequar em nenhuma caixinha que empurramos para ela logo ao nascer. Pessoas transexuais são tidas até hoje pela psiquiatria como pessoas que padecem de transtorno identitário. Tratamentos já foram realizados para extinguir a população negra, promovendo uniões interraciais cuja prole seria menos negra que o seu parent negro. E, num processo contínuo de exclusão e marginalização, a Medicina, muito politicamente, vai determinando quem está apto ou não para uma vida plena.

Então, esse pensamento, esse fundamento da saúde não pode existir. O corpo, pra mim, não passa da representação física de algo muito maior (e filosófico): a vida. E dele eu faço o que eu bem entender. Eu tenho certeza (por já ter passado por isso) que ter engordado novamente me gera muito mais aborrecimentos (no sentido de as pessoas me aborrecerem com isso, me questionarem, denotarem uma fraqueza em mim) do que quando assumi publicamente ter tomado certo anabolizante, apenas para acelerar o processo de obtenção do corpo perfeito. E, migos, isso tá ERRADO. A máxima "meu corpo, minhas regras" tem que transcender a genitália e subir pra barriga (mas sem orbitar no umbigo), incendiar a pele e chamuscar até o último fio de cabelo. Eu tenho que poder entrar numa lanchonete e pedir um hamburger às nove da manhã sem olhos macabros sobre os dígitos que aparecem em minha balança - que vestem uma máscara de preocupação, de afeto, de amor.

Porque o que mata não é a gordura. É a caça às bruxas que se promove contra ela (descobri que tinha duas fatias de pizza no microondas. Joguei mostarda e estou comendo enquanto aperto o botão "publicar").





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