sábado, 18 de janeiro de 2014

No final das contas, é muito estranho se sentir vivo. Até agora não consegui decodificar as luzes e o sorriso. Porque, eventualmente, era tudo a mesma coisa, e o calor ao redor me impediria de fazer um juízo racional no velho estilo "colocar tudo em seu devido lugar". A cerveja estava gelada e meu espírito era artesanal.  A tequila não desceu rasgando mais do que o ar impuro que eu respirava. Por sorte, o chão era bastante firme e as paredes me escoraram de cometer um erro.  Mas... ser genuinamente feliz na fugacidade do strobelight é errado? Querer fugir do ar-condicionado e ver as estrelas depois de uma pancada na cabeça é um pecado? Rir ironicamente da sincronicidade do VJ que projetou Smiths na parede e fumar trinta cigarros de desespero do querer-agora-e-não-me-importa-atropelar-o-universo (cadê meu maço de ontem por falar nisso) é contra a moral e os bons costumes?

Pássaro proibido de sonhar. Misturo Caetano e The Cure enquanto minha irmã dorme na sala.

Aqui, a lombar doi mas eu sonhei acordado.

domingo, 13 de outubro de 2013

We Can't Stop: a exaltação da igualdade através do látex condenável.


Demorei muito tempo para falar apropriadamente sobre o que achei da performance da Miley Cyrus no VMA, e, de uma maneira geral, sobre todo o seu comportamento na era "Bangerz", seu terceiro disco de estúdio (quarto, se contarmos o "Introducing Miley Cyrus" como um álbum, posto que ele era um disco bônus de uma das trilhas sonoras de "Hannah Montana"). De um lado, essa demora se deu porque eu queria esperar o disco sair para entender se a vibe de "We Can't Stop" se fazia presente na "obra" tomada em seu conjunto. De outro, precisava confirmar minhas intuições através de algumas pesquisas.

A primeira indagação a que chego, muito além da discussão sobre a roupa dela estar ou não apropriada, ou, ainda, se é bonito ou não ela ficar colocando a língua para fora é: se essa nova postura da Miley Cyrus reafirma a masculinidade hegemônica, ou faz que ela ajude, de certamente, a  desconstruir a questão de gênero quando ela se coloca num patamar de fazer exatamente o que um homem faz dentro do mainstream (ostentação, conteúdo sexual desenfreado, etc.), só que, diferentemente do homem, sofre uma avalanche de críticas.

A investigação primária é: a quem essa conduta da Miley está servindo? Sem dúvidas, afirmo categoricamente que é ao capitalismo. Ela está sob a guarida de uma grande gravadora, com um trabalho arquitetonicamente planejado de publicidade, está em todos os canais de televisão e em primeiro lugar nas paradas musicais de 70 países. Do contrário, ela poderia ter feito um trabalho intimista, autobiográfico, sem apoio da gravadora. Cyndi Lauper lançou, em 1996, um álbum sem maiores divulgações, o "Sisters of Avalon", com conteúdo pessoal, e, a despeito do pouco sucesso, a crítica o aclama como um de seus melhores discos. Miley tem dinheiro para isso. Ela é filha de um dos maiores artistas country dos anos 80, afilhada de Dolly Parton e fez fortuna com Hannah Montana. Mas, não, ela escolheu o caminho mais fácil e, obviamente, mais dúbio, porque ela se coloca muito mais em evidência: o comportamento dela, então, adentrando em milhares de lares, afronta posições conservadoras e torna difícil estabelecer qual o serviço - ou desserviço - que o capitalismo, no caso, gera no seio social.

Contudo, o mainstream não se constitui de uma via única. Não se trata aqui de simplesmente jogar na sociedade a ideia de uma mulher estar agindo fora dos padrões patriarcais. O maistream busca na sociedade a inspiração necessária para a produção intelectual e a introjeta, depois de devidamente "refinada", como um produto a ser consumido. Então, aqui se conclui que não necessariamente a ideia vendida com o comportamento de Miley seja uma vulgarização da sexualidade feminina. O que defendo, por ora, é que a ideia de que a mulher não pode ser vulgar foi coletada pelo mainstream e jogado no palco do VMA na forma de Miley Cyrus protagonizando uma cena tida por grotesca, com a participação de ursos gigantes e insinuações de masturbação.

O raciocínio aqui é igual ao utilizado pelo mundo da Moda: há uma pesquisa de tendência que, depois de apurada, é lançada no mercado no formato do hype, do must-have, da necessidade vital de consumo. 

Logo após a performance do VMA, li na internet um texto (que agora não consigo localizar) que comparava o comportamento da Miley com uma cantora dos anos 80, que se preservou e não se valeu da erotização para fazer circular a sua música. Foi mais ou menos neste sentido a "carta aberta" de Sinead O'Connor insinuando que Miley estava se permitindo "prostituir" (cujo subtexto já toma como princípio que a prostituição é uma coisa negativa em sua essência). Porém, esse pensamento é reducionista, porque temos exemplos no mainstream, como Madonna e Cyndi que, por mais que se prestassem à manutenção do capitalismo - já que encontravam inequivocamente presas por contratos, geraram uma comoção comportamental. Cyndi faz uma ode à masturbação feminina em "She Bop", trilha sonora de "Os Goonies", e Madonna leva a insinuação para o palco. Assim como nos anos 80, temos hoje artistas femininas se COLOCANDO enquanto personalidades inteiras, e não apenas um substrato do domínio masculino.

Nicki Minaj, uma rapper negra que foge deliberadamente do padrão corporal prescrito pela misoginia presente no rap, Rihanna, que foi vítima de violência doméstica e que, alguns anos depois, reatou com o seu agressor, o que também foi tomado com um escândalo e cujas conclusões devem seguir a mesma lógica que aqui é exposta, e, por fim, Miley, ainda que estejam servindo ao capitalismo, podem, de uma maneira controversa, estar efetivamente influenciando o comportamento de milhares de mulheres. Porque, em 2013, elas se colocam em uma posição da nudez, da exposição, da provocação (do corpo e da alma) para falar, tanto do amor - terreno tido como eminentemente feminino, uma vez que o masculino é/era apenas impulso sexual - como do carro que acabaram de comprar com o dinheiro delas, colocando o machismo, no chão. A igualdade aqui se opera não "de baixo para cima": as mulheres não estão, representadas por Miley e cia., buscando subir escadas numa escala social construída historicamente para alcançar equivalência com os homens. O movimento é natural: elas apenas estão em pé de igualdade. A mulher que fala de carro, fugindo da ideia padronizada de ser uma gostosona que figura no videoclipe como mera extensão do veículo, apenas mais um objeto de prazer do pênis, agora fala de suas propriedades - materiais e enquanto ser humano. Ela pode, ela trabalha, ela compra.

Contudo, esse pensamento ainda precisa ser sofisticado a ponto de impedir um deslize conceitual que outros experimentos musicais do gênero tentaram. Em "Irreplaceable", da Beyoncé, ela trata o seu poder econômico como uma forma de lidar com o recalque de um término de um relacionamento. Ela subjaz o seu recalque ao fato de ser detentoras de posses e expulsa o ex-par romântico de casa. Os versos "Rolling her around in the car that I bought you, baby, drop them keys, hurry up before your taxi leaves" apenas evidenciam a construção social de que a mulher é inocente e não pode ser traída, e coloca como única arma disponível o dinheiro. Em "Like a Boy", da Ciara, a presença do outro masculino também se torna fonte essencial de busca, não por superação, mas por equivalência. Constroi na música uma atmosfera em que a mulher pode fazer exatamente como o homem, que é fazer o parceiro romântico chorar, que é estar festejando às quatro da manhã. Em ambos os casos, o padrão perseguido é a figura masculina. É uma imitação barata do modus operandi masculino, e não uma (re)afirmação do conteúdo feminino.

Então, a sensibilidade que deve permear o raciocínio, ao tratar de assuntos como a performance de Miley Cyrus é a de diferenciar, no conteúdo do mainstream, a exaltação do feminino enquanto celebração da igualdade efetiva, da mera utilização de elementos misóginos (como a "perfeição corporal" e a ostentação econômica) como forma de reagir à opressão masculina. Sem essa precaução, corremos o risco de cair na mesmice da condenação vazia, e, inevitalmente, da reprodução dos padrões machistas que contaminam a sociedade.

domingo, 18 de agosto de 2013

Despertar.

De todas as minhas manhãs passadas em Teresópolis, as minha preferidas eram as que eu acordava cedo no domingo, com a temperatura exatamente igual a que está hoje. De moletom - peça que desonra qualquer guarda-roupa, porém, extremamente necessária em uma cidade serrana - e meias nos pés, eu saía do meu quarto e tinha um café quentinho me esperando - já adoçado, hábito do qual me desvinculei, já que hoje só uso adoçante. Comia um pão francês com manteiga e via alguma série que estava passando em um dos canais de ficção científica que minha mãe sempre assiste. Com um pouco de sorte, estava sintonizado na Warner e eu já começava o dia com risadas de alguma reprise de alguma série que já havia sido cancelada há, pelo menos, três anos. Na pior, minha mãe estava ouvindo música - e eu digo "na pior" porque muito provavelmente era algum destes padres pop que me despertavam. Sentava no sofá e recebia o bom dia religioso dos seis poodles. Certamente dali a uma ou duas horas eu brigaria com a minha irmã pelo motivo mais idiota do mundo, como chamar uma amiga mal vestida dela de... mal vestida. Claro que eu fui um babaca todas as santas vezes que eu fiz isso. Mas se existe uma função para os irmãos mais velhos é encher o saco. E se existe uma função para os irmãos mais velhos gays, definitivamente, é zelar para que a irmãzinha não ouça um TEJE PRESO pelo Fashion Police que é a vida. Mas tudo bem. Dali a mais uma meia hora nós certamente estaríamos nos lambendo e, sei lá, ouvindo a trilha sonora de Pokémon trancados no quarto, deitados na cama, contemplando o mato crescente de cujo orvalho perfumava toda a casa. Para a hora do almoço, eu pedia - e quase rezava - que minha mãe fizesse salada de maionese. Ou farofa. Ou os dois. Mas pedia - e quase rezava - para que ela não fizesse o tal do lagarto redondo com aquela linguiça enfiada no meio, com molho de queijo e creme de leite. Eu achava a carne seca. Mas se fosse frango assado com batata, ou bife à parmigiana, a alegria era certa. Domingo era dia de comida especial, algo tão sagrado como o lanche destrutivo de dietas do sábado à noite. Me lembro até hoje da panela gigante na qual eu derramava farinha vagarosamente para a massa de rissole não embolar. Ou, então, de todas as vezes que eu roubava massa de pizza crua enquanto ela estava descansando. Nem sei se minha mãe descobriu que eu fazia isso. E, por mais estranho que pareça, eu realmente gostava de comer aquela massa crua. Provavelmente, muito mais pelo sabor de proibido do que pelo gosto em si. Depois do lanche, ou eu saia às pressas porque tinha algum evento social inadiável - o que, em Teresópolis, irremediavelmente implicava em ficar sentado em algum posto de gasolina jogando conversa fora e bebendo cerveja em lata - se eu tivesse dinheiro - ou refrigerante com vodka barata - se fossem tempos de vacas magras. Ou, se eu não saísse, era mais um pouco de televisão e cama.

Era simples. Bem simples.

 E eu sinto falta disto. Em manhãs como a de hoje, em que, bebendo o meu café, fumando meu cigarro, ouvindo minha música, eu entendo a profundidade do "nosso". É muito mais que DNA. E, ao contrário do que gritei várias vezes, não é um fardo. É amor.

sábado, 3 de agosto de 2013

i'm not okay (i promise)

Dotado de alguma estranha consciência, resolvo pular uma refeição, já que o sono não vem. Um misto de "saco vazio não para em pé" com a same old necessidade de fazer o vazio machucar. Porque a mola propulsora do amanhã é sempre o hoje doloroso. Claro, lembrando que o amanhã já é hoje e certamente todos os planos jamais serão concretizados. Ou teremos chuva ou teremos falta de vontade - informa a previsão do contratempo. Ou teremos manifestação ou teremos desolação - informa o noticiário das inverdades. No final das contas, o que sobra é o conforto sufocante do sofá cinza. Nele jazo.

Resolvi passar algumas fotos do hoje que poderia ter sido meu, caso o impulso e o medo da prisão não me fossem tão inatos. Basicamente, tudo o que eu queria estar fazendo. Mas, de alguma forma, a celebração do sobrepeso e a ostentação estética me ofendem. Me ofendem porque são duas da manhã e eu estou aqui cercado de madeira, com cheiro de cigarro na mão, uma certa fome, e um copo de café já frio.

Somando tudo, é apenas recalque.

São duas da manhã e estou há mais de uma hora respirando fundo o suficiente para dar conta da ansiedade que bateu à porta que eu abri para decidirmos quais sabores de chá inundarão as horas que ainda me restam até o próximo placebo.

Como dividendo, temos a irremediável solidão.

domingo, 2 de junho de 2013

Xadrez.

quisera eu correr na mesma velocidade que o desespero,
ou me alimentar apenas das palavras que escrevo,
das notas que entoo,

mas não.
me sobra apenas o papel cínico que interpreto,
neste teatro de fantoches descoloridas,
submerso em madeira pagã,
da qual faço minha cruz.

Ando em L.

quisera eu desacelerar o ritmo deste desalento,
ou apenas repousar este corpo sonolento
cheio de enjoo,

mas não.
me sobra apenas o corpo pálido que espeto,
neste cinema de almas perdidas,
emergindo em vaidade vã,
da qual escapo sem luz.

Cá estou, diagonal.

quisera eu ter a sorte de prover meu próprio sustento,
ou então pousar em mim algum olhar atento,
para alçar voo.

mas não.
me sobra apenas a fome na noite em que desperto,
neste palco de pessoas sem vidas,
pairando nu em qualquer cama sã,
a qual devo fazer jus.

Xeque-mate.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Horses.

Ato I - Glória.

Eu queria que as minhas inimigas me vissem agora borrifando Carolina Herrera na sala porque o Bom Ar acabou.

Ato II - Redondo Beach.
Foram feitas projeções sobre como o homem será em 3014. Aumentará de tamanho, suas mãos ficarão mais longas, os olhos vão se aproximar e...o cérebro vai diminuir. E me pego na cozinha pensando "já tem meia hora que eu comi? Melhor comer meu arroz integral feat. solidão. Não quero perder massa muscular.

Mas estou aqui, diminuindo o cérebro. E está lindo.

Ato III - Birdland.
Tudo, absolutamente tudo, nesta vida, é falso. Não há nada atrás de você, a não ser um pano verde. O tal do chroma key. Provavelmente, nem você está ali. Está em outro estúdio - ou outra vida - sendo eletronicamente projetado para cá. Você não está sentado em um sofá. Apenas te manipularam, como boneco, para que ficar nesta posição ultrajante. Portanto, você não está confortável. Mas tudo bem: você é de plástico. Se quebrarem, consertam, jogam fora ou compram outro. O fetiche de desmontar o próximo e remontar um show de aberrações. Seu braço é seu nariz, seus olhos estão no umbigo e o rabo, entre as pernas.

Ato IV - Free Money
Acho que os meus momentos comigo mesmo - que agora são muitos - precisam ser organizados. Preciso dividí-los em três grupos: o amanhã profissional, o amanhã físico-emocional e o amanhã intelectual. E, embora exista a possibilidade de dividir os três pesos, dando mais ênfase para a algum e menos para os outros, eu simplesmente não consigo. Não é me natural. Quando eu deposito algo em algum amanhã, eu o faço com toda a minha força e velocidade. Modifiquei meu corpo visivelmente com a academia, em quatro meses recém-completados. Em quatro meses. Porém, o amanhã intelectual está prejudicado. Hoje, depois de muito tempo, voltei a estudar música. Pegar discos antigos, de artistas que eu sequer ouvia há duas semanas - apesar de seu peso e importância no mundo do entretenimento -, ler letras, ver histórias. Muito tempo. Notei que parei de baixar apenas singles, apenas por ter preguiça de ligar o computador, baixar a mp3 e sincronizar no iPod. E, devo assumir, muitas vezes voltei do trabalho SEM OUVIR MÚSICA por não estar aguentando mais. "Não tem música aqui". 78 Gb de música no iPod e eu falo "não tem música aqui". Certo. É esse sim o seu problema. "Tudo bem um amanhã em que sou gordo ou sozinho, se eu tiver sofrendo em Paris". Ou, talvez um "Tudo bem não ter lido todos os cientistas políticos do mundo, o que importa é que essa poltrona-do-papai está incrível". Mas, não. Não quero um amanhã cultíssimo e magro e com a pele incrível e os dentes iguais os de comercial de TV. Deveria querer. Mas não. O meu maior pavor, e que me faz depositar cada vez menos esforço nele, é um amanhã profissional fracassado. Depender dos outros. Sério. Não.

Ato V - Kimberly
Mermão, já era: estou passando o biscoito de leite desnatado na pastinha de soja de berinjela.

Ato VI - Break It Up
Como é viver a vida em preto-e-branco? Por favor, encarem todas as implicações filosóficas da pergunta. Eu me recuso a acreditar que antes da TV a Cores, as pessoas tinham cores. Era todo mundo em preto e branco. Tinha até um ou outro, mais sacaninha, que era sépia. Podia ser proposital. Podia ser a velhice e sujeira no vidro da tela. Mas cores? Não.

Ato VII - Land Horses
Do vocalise até o sintetizador,
sou seu.

Ato VIII - Elegie
Este é a pior parte deste estudo musical: eu descubro que Hilary Duff sampleou Patty Smith e tudo o que você quer é: morrer de vergonha.

Ato IX - My Generation
Vocês estão pegando o lado errado desta estrada. Vocês estão tomando sopa para não ter que mastigar, na mesma velocidade que pretendem comprar uma ideia pré-fabricada do que desenvolver um pensamento. Em todas as esferas: tem empresários que simplesmente gastam milhões para ter a opinião de algum "especialista" que, francamente, é exatamente igual a de uma revistinha de auto-ajuda. Assim, tem também o cara que lê um jornalzinho por semana, acredita em tudo o que está escrito e, Veja você: temos mais um robôzinho. Tudo muito fácil, tudo muito inventado. Voltemos ao Chroma Key: você está solto num espaço vazio. Não há nada além do mais imenso nada. Com um fundo verde. Mas não um verde-natureza. Você não se sente em uma grande árvore, seguro pelos galhos, protegido pelas folhas. Você é apenas um experimento científico, com aquele verde que berra muito mais que você, um berro mudo, sem cordas vocais. Jogam atrás de você um cenário único. Você, bem-sucedido, que já viajou todo O Globo. Tem seu carro, sua esposa e suas adoráveis criancinhas loiras, vermelhinhas pelo sol que afetou suas peles tão clarinhas. Sua casa, com um lindo quintal verde e, de longe, vê o cachorro latindo porque tem algo sendo depositado em uma caixa postal que ostenta um lindíssimo "MAIL" em dourado.Corta. Você não é isso. Você é só mais um que está pegando o ônibus de manhã, com seu uniforme amassado e o colarinho manchado do seu suor. É só mais um que, ao descer do ônibus, corre o risco de ser assaltado por alguém que tem menos sorte que você. Como, claro, se você tivesse sorte. Ainda não ganhou na Mega-Sena, que você, religiosamente, joga toda semana. O novo sonho brasileiro. Mas está imóvel no cenário. Não ingere uma palavra, quem dirá digerir um livro.  Pega o seu dinheiro no final do mês e paga o seu aluguel na cobiçada Rua da Mentira. Paga o seu carnê da Farsa Própria. E continua respirando em seus pulmões de plástico. Sendo examinado com um estetoscópio de borracha. Sendo medicado com um placebo barato. E sendo morto por balas Juquinha. E, então, desmontado e remontado. A sua cabeça está nas suas costas. A suas orelhas agora pulsam no lugar do seu coração.

E no final das contas, você meteu os pés pelas mãos.

Canvas.

Quero rasgar cores e fazer vida
pincelar amores e colar o vento
que passa e leva metade de sono
entre a apreensão branca da tela e o alívio inventado da moldura.

Tal cubismo, caleidoscopio-me em fragmentos alegres
mas, tal labirinto, esbravejo contra o centro sépia
desafio pirâmides com a fumaça da fome
me reinvento em um talento inventado.

Quero cantar dores e brindar a avenida
esculpir pudores e cortar o alento
que laça e prende o completo abandono
entre a agressão vazia da cela e o declive aluado da fartura.