quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Hello Kitty e o controle dos corpos.



Uma das crenças mais importantes de toda a humanidade acaba de cair: Hello Kitty é um ser humano, e não um gatinho, como todo mundo cresceu acreditando (inclusive a Avril Lavigne, aparentemente, com o seu indecoroso MEOW aos 2:30' dessa música estúpida, mas que serve de trilha sonora para esse texto). Percebi uma certa comoção no Facebook hoje e, claro, eu tinha que pensar muito além do que a divulgação dessa notícia poderia predizer. Portanto, vou me dar o direito de escrever algumas linhas sobre algo que eu sequer confio (por que, francamente, quem consegue lidar com um personagem que não tem boca?)

O que me intriga não é a declaração bombástica da Sanrio, empresa criadora da personagem. Na verdade, eu posso falar claramente que estou pouco me lixando para o fato de Hello Kitty ser uma menininha*, e não um gato, uma centopeia ou um dinossauro. O que, aliás, deveria ser a saída mais adequada para quando lidamos com aquilo que desconhecemos ou que, por qualquer motivo, nos causa estranheza.

A matéria que linkei acima fala que "Contrariando o consenso de toda uma geração, a mundialmente conhecida personagem Hello Kitty não é um gato, mas uma menina". E daí eu me questiono: quem foi que deu autoridade para toda uma geração negar a natureza humana da personagem e relegá-la ao papel de mero bicho de estimação?

Ah, por que ela tem bigode?
Por que a orelha dela é pontuda?
Por que ela é branca e passa a impressão de ser felpuda?
Ou seria porque ela simplesmente não se enquadra dentro da nossa visão média de... ser humano?

Pode parecer brincadeira, mas a questão é bastante séria. É séria, e tem gente se debruçando de verdade numa atividade de desconstrução de determinados padrões (e um livro interessante que estou lendo sobre o tema pode ser encontrado neste link). Porque, sabemos, a mesma concepção do "ser humano" que nós temos hoje e que nos autoriza a desacreditar a Hello Kitty enquanto ser humano, é a concepção que autoriza toda a coletividade a rejeitar o reconhecimento de, por exemplo, transexuais, nos gêneros em que eles, psicologicamente, se veem. E, por favor, não diminuam este fato: estou falando de milhares de transexuais, travestis, e quaisquer outras pessoas que não se enquadram no binarismo de gênero (homem x mulher) que são impedidas de fazerem as coisas mais simples do mundo, como, por exemplo, frequentar um banheiro público.

E, se quiserem que eu vá além, é também a mesma concepção que impede que mulheres decidam determinadas ações de suas vidas - como aborto, peso, etc. - afinal, nos foi empurrado goela abaixo um padrão X e que fazem de nós (alguns mais que outros, é verdade) vítimas e, ao mesmo tempo, algozes.

Fica então a reflexão - que começa com uma frivolidade, como a história da Hello Kitty, mas que pode ser amplamente utilizada em nossa vida: se olharmos para o lado e "não entendermos" o que estamos vendo, não podemos tentar "colocar" aquela pessoa numa prateleira que nos remeta a algum padrão já conhecido. É feio, é falta de respeito com o coleguinha e é burro. Tentemos sempre desconstruir essas imagens que temos preconcebidas em nós, principalmente no que toca ao corpo alheio, já que vivemos em uma sociedade obviamente binária (homem x mulher, alto x baixo, magro x alto).

Nossas percepções não são nossas: elas são fruto de uma história opressora, que diminuiu e diminui todos aqueles que se encontram além ou no meio destas classificações primárias que aceitamos e reproduzimos constantemente.

* Sobre a Hello Kitty ser uma menininha: vejam que aqui temos mais um padrão que precisa ser destruído: ela é uma menininha que usa rosa e tem um lacinho na cabeça. E tem um bichinho de estimação chamado Charmmy Kitty. Convido vocês a problematizarem o bigode da Hello Kitty. E, mais: e se ela quisesse que o seu animalzinho se chamasse ALEXANDRE FROTA? Por que não poderia?

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