domingo, 31 de agosto de 2014

Divergente

Imagem retirada do Facebook da ativista feminista Heloisa Melino, com edição de Nina Moraes.


Eu gosto dos meandros da sincronicidade. Quem me conhece, sabe que eu sou aficionado por esta literatura infanto-juvenil que vira filme em Hollywood e a indústria deveria ter medo da merda que está fazendo. Não, não estou falando de 50 tons de cinza e sadomasô de mentirinha. Nem a meia dúzia de filmes românticos que brotam todos os anos nas telonas vomitando em cima de todo mundo uma versão moderninha do príncipe encantado. É bom, inclusive falar em príncipe encantado: o que eu pretendo falar versa justamente sobre tudo estar centrado na imagem do homem.

Hoje eu vi, finalmente, o filme Divergent. E, na mesma linha que a coleção Jogos Vorazes, que já virou filme, e a coleção Feios, que, infelizmente, ainda não teve sua adaptação cinematográfica (e deveria), Divergent tem um conteúdo político fascinante (e, sejamos verdadeiros, repetitivo): um mundo pós-apocalíptico em que pessoas são categorizadas, separadas em grupos que cumprem suas devidas funções, e não enchem o saco do governo. Aliás, como é óbvio, é o Estado que faz essa função. Se em Jogos Vorazes as pessoas são separadas geograficamente em 13 distritos, cada um com suas expertises previamente definidas pelo controle estatal, em Divergent eles dividem o mesmo território, porém, divididos em cinco facções - cada uma, obviamente, com uma área de atuação.

E então temos, em ambos os jogos, a protagonista: sim, uma mulher. Uma heroína, que consegue vislumbrar no esquema financiado pelo Estado a crueldade ínsita do Leviatã pós-apocalíptico. Uma heroína que é interpelada a "escolher quem ela é de verdade, não porque os outros querem, mas porque a escolha conduzirá aonde ela pertence".  A partir daí, ela larga sua facção de origem (e sua família - facção acima do sangue) e passa a prestar serviços ao Estado em sua facção de destino.

A partir daí, é muito tiro porrada e bomba, até que o Estado (contém spoiler) anuncia: Divergents threaten that system. Don’t get me wrong, there’s a certain beauty in your resistance. Your defiance of categorization. But it’s a beauty we can’t afford. (Divergentes ameaçam o sistema. Não me entenda mal, há uma certa beleza em sua resistência. A desobediência à categorização. Mas é uma beleza que nós não podemos permitir".

Talvez eu esteja lendo muito sobre Teoria Queer, mas é impossível ouvir uma frase como a acima e não refletir sobre como somos diuturnamente colocados em prateleiras - e, apesar de supostamente sermos agraciados com alguma dose de autonomia da vontade, nossa mobilidade não é real.

E então minha reflexão poderia ter parado aí. Mas abri o Facebook enquanto fumava meu último cigarro e vi a foto que ilustra esse post, publicada pela Heloisa Melino, acompanhado do texto abaixo:

Assim.. eu achei SUPER engraçada a história do "só tem bicha nessa cidade" e entendo o contexto (antes que me apedrejem). Entendo também, no entanto, que é muito sintomático que nos dias/semana da visibilidade LÉSBICA tenha pipocado e ainda esteja pipocando a visibilidade BICHA (junto, claro, da INvisibilidade Trans e da invisibilidade lésbica cis ou trans). Essa foto é antiga, mas pedi pra amiga que ahaza no photoshop, a Nina Moraes pra repaginar e fazer um contraponto pra afirmar que, não só bicha, mas SÓ TEM SAPATÃ NESSA CIDADE.

Não sei exatamente quando a história do "só tem bicha nessa cidade" foi efetivamente publicada (lembre da história aqui). Mas a buemba caiu no meu colo no dia 29 de agosto, que vem a ser, ironicamente, o Dia da Visibilidade Lésbica. Digo ironicamente pois, em uma sociedade centrada na figura do homem, a internet em peso fez uma campanha com a hashtag #sótembichanessacidade. E se falou de bicha o dia inteiro. E bicha aqui e bicha ali.

Claro que um lado meu, militante, e cada vez mais interessado pela literatura queer, achou muito legal ver os gays assumindo o termo bicha e subvertendo-o. Porém, convenhamos que tínhamos 364 outros dias no ano para isso. Mas, como eu disse no início do texto que eu gosto dos meandros da sincronicidade, eu vou evitar cair no pensamento de que isso foi uma forma consciente de abafar o dia da Visibilidade Lésbica.

Eu disse conscientemente.

Porque, a verdade é que, diariamente, não há igualdade de vozes dentro do movimento LGBT (e você, leitor, pode se sentir bastante confortável de inserir as letras que bem entender aqui). Aliás, é importante lembrar que o L passou à frente da ex-sigla GLBT justamente para dar voz ao movimento de mulheres - afinal, se você localiza topograficamente uma letra antes da outra, por mais que acreditemos na horizontalidade do movimento, a verdade é que, implicitamente, você está construindo uma hierarquia. E, se estamos travando uma batalha por uma Igualdade que se pretenda real, você tem de dar mais oportunidade àqueles que estão em um nível mais profundo de desigualdade. Logo, não se trata de uma simples mudança de posição das letras - é conceitual, e eu concordo plenamente.

Claro, se tentarmos fazer uma genealogia do motivo que faz com que a letra L tenha vindo à frente, poderíamos tirar da conta do movimento LGBT e trabalhar apenas com as distorções historicamente criadas entre os gêneros masculino e feminino. A nossa sociedade foi construída com base na ideia da superioridade masculina. O problema é que esta questão entra no movimento LGBT e o contamina: se você virar para uma pessoa "média" e falar a palavra "gay", ela vai remeter imediatamente a dois homens - muito embora o termo gay se refira tanto a homens quanto a mulheres. Quando você fala em casamento entre pessoas do mesmo sexo, grande parte das imagens que circulam na internet é de dois homens. Eu sugiro o exercício de buscar por "casamento gay" no Google Images: minha pesquisa retornou oito casais masculinos contra apenas dois femininos. Se você vai até à mídia para fazer a mesma investigação, você vai se lembrar que a grande parte dos personagens homossexuais são... homens. A própria celeuma com o beijo gay se deu num beijo protagonizado por dois homens e, vejam só, quando o beijo foi entre duas mulheres, a comoção social foi infinitamente menor.

E aí temos as seguintes opções: 1) falar que "a culpa é da sociedade centrada no homem"; 2) falar que "não, é impressão minha, isso não existe, e, ah, se não tem tanto preconceito assim com lésbicas, é porque elas estão mais naturalizadas na sociedade".

Se você escolheu a opção 2, queridx, você está apenas escolhendo a opção 1, só que está mais contaminadx com a ideologia histórica: lésbicas estão supostamente mais naturalizadas porque elas foram transformadas em fetiche masculino - e, como estão servindo ao deleite do homem, logo, é um casal mais, digamos, "aceitável".

E falar em estar "naturalizado" e "ser aceitável" é cruel, porque você está chamando x coleguinha ao lado de anti-natural e inaceitável. E eu escolhi os termos de propósito.

O convite deste texto não é para deixar de debater uma notícia que, infelizmente, teve a grande divulgação nas redes sociais num dia em que se deveria estar problematizando o papel da lésbica dentro da sociedade (e até mesmo dentro do movimento). O convite é para o movimento deixar de se centrar no homem. Já que a notícia foi publicada, nós perdemos uma grande oportunidade de levar diversas questões à discussão.

O movimento GGGG (sim: de GAY GAY GAY GAY) foi egoísta, sim, por ter feito um grande carnaval sobre o #sótembichanessacidade e não ter problematizado a questão das outras letras do movimento LGBT.

O movimento GGGG foi estúpido e cruel por ter levado apenas a palavra bicha em consideração. Entendo que tenha sido a frase utilizada pelo senhorzinho-homofóbico-na-fila-do-Bobs, mas, se preciso lembrar a todxs, a primeira ofensa foi disparada contra x atendente transexual. Mas, obviamente, o senhorzinho-homofóbico-na-fila-do-Bobs foi preso por desacatar uma autoridade abertamente homossexual. Em suma, o senhorzinho-homofóbico-na-fila-do-Bobs foi apenas homofóbico: ele não foi transfóbico - que é um problema social completamente diferente, com outras implicações - a começar pelo óbvio: a homofobia trabalha com a orientação sexual; a transfobia trabalha com a identidade de gênero.

O movimento GGGG é formado por homens.

Então guardemos alguma coerência entre nossos CDs da Lady Gaga escondidos na gaveta de jockstraps: se não queremos ser vítimas de homofobia, não sejamos machistas.


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