quarta-feira, 6 de março de 2013

Amanhã de manhã.

Eu não aguento mais esse ar viciado. Da mesma forma que eu não mais suporto olhar para os estilhaços deste espelho no qual me faço vários. E a verdade é que nenhum destes cacos realmente me agrada. Talvez os mais novos. Talvez aqueles que, de tão antigos, já não fazem mais parte de mim, mas que vejo com algum apreço. Eram estilhaços bons. Hoje, sobram apenas os cacos de um eu ônibus em chamas: guardo o coletivo em mim, mas será que ele está realmente seguro?

Com a visão um pouco turva, seleciono cuidadosamente um bom disco para ouvir. Tenho receio de escolher um som muito revoltado e terminar me debatendo no chão. Mas também tenho medo de encher a vitrola do mais puro vazio. O velho dilema do pensar versus não pensar. Do agir versus ficar quieto. Devo atear fogo em minhas roupas e desfilar nu nesta avenida que não festeja nenhum carnaval? Devo distribuir presentes sabendo que o natal é apenas no futuro, aquele tempo verbal intangível e de difícil conjugação? Porque se o futuro do verbo ver é verei, quem realmente vê o rei? 


Quem é o rei? Nesta desinência modo-temporal, não tenho modos, não tenho tempo. Forço boa educação a cada ponto de exclamação que involuntariamente aponho no final de cada frase. Meu lugar na fila do mercado é sagrada, diante da falta de lugar no mundo. São onze da noite e estou engasgado com a fumaça de um cigarro. Descrente em crenças absolutas. Deslizando entre uma cadeira ou outra tentando apaziguar a espinha. Tirando espinhos do céu da boca. Quando mesmo limpei os meus dentes? Quando mesmo eu mastiguei algo concreto? Minha roupa está impecável para interpretar esse papel social barato que me é imposto? Será que minha foto nas redes sociais está realmente adequada? A quantas anda o meu inglês? Se a taça do mundo é nossa, em que copa posso colocar um tapete e, quem sabe, esconder debaixo dele a quantidade de sujeira que venho acumulando debaixo de minhas unhas roídas?


Subitamente, engulo café quente e penso ter tomado uma grande decisão: parar de murrar pontas de facas e trocar o saco de areia por algo móvel. Algo vivo. Numa suprarrealidade onde não sei quem são os amigos e os inimigos, disparo uma arma imaginária, feita com a ponta dos meus dedos, para todos os lados. Meto um dedo na ferida de um suposto inimigo, e aponto uma proteção para a tempestade para um amigo com o outro. Tenho dez dedos nas mãos para distribuir equitativamente entre justiças e injustiças. Um dedo para cada caco que agora recolho do chão. Duas mãos sangrando para tentar colar o velho espelho e me ver, algo desfocado, no amanhã de manhã. 


No futuro de difícil conjugação, mas que conjuro meu. 

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