terça-feira, 19 de março de 2013

Anticipating.


Era algum dia de 2002. Lembro-me de estar vendo um DVD da Britney Spears, na casa da minha madrinha. Era um dia de 2002, e eu não tinha aparelho de DVD na casa dos meus pais. E ainda que tivesse: nunca foi fácil dissociar a música pop da sexualidade humana. Existe um clichê barato que quem ouve Britney Spears é gay. E talvez não seja um clichê. Talvez estejamos tão atrelados a uma ideia de que tudo é separado em grupos comportamentais óbvios, que ouvir Britney Spears conduz necessariamente a ser sodomizado. Não importa o tamanho do fone de ouvido: ele está entrando em um buraco seu e, logo, você está sendo violado. Parabéns: em algum dia de 2002, você se tornou uma abominação.

Neste algum dia de 2002, um vulto chamado meu pai se materializou na janela da casa da minha madrinha. Top down, on the strip, lookin' in the mirror and I'm checkin' out my lipstick e lá estava ele. Algumas horas depois de ele mencionar expressamente que queria falar comigo. Algumas horas depois de minha mãe revelar que o primogênito estava... se envolvendo com homens. E não eram homens. O plural era singular e, contra todas as probabilidades, monogâmico. Não a culpo: creio no choque. Uma formação catedrática a fez perder o ar, quando, do alto da ironia, eu afirmei não estar usando drogas, mas, sim, dormindo com um homem. E, dentro de uma sociedade em que a droga é eternizada como o grande vilão, isso não deveria ser uma boa nova? Pois não o foi. Pedi sigilo, o mesmo foi quebrado. Ninguém nunca soube colocar um cadeado em diários, de qualquer forma. E, da inexistência de trancas e silêncios, levou-se à divisão de águas. Em algum dia de 2002.

Neste algum dia de 2002, eu ouvi que tudo era uma fase. E que meu pai jamais teria que se preocupar com o que minha mãe havia falado, pois, afinal, passaria. Era tudo uma grande confusão e que, inclusive, fazia parte do meu processo de amadurecimento. Em algum dia de 2002, isso poderia ser uma fase.

Mas não.

Nunca foi uma fase.

Em algum dia do mesmo 2002, ele percebeu que não era uma fase. E não foi o disco novo da Britney Spears que demonstrou isso. Não. Dentro dos clichês mais óbvios, meu pai preferiu escolher o fato de eu estar em uma fila de banco, pagando a minha faculdade, usando um par de brincos. Mas não. Não eram brincos grandes, de pressão, com formatos geométricos e absolutamente coloridos. Não. Eram brincos discretos, de aço cirúrgico, pequenos. A orelha ainda estava vermelha: provavelmente eu havia acabado de furá-la. Mas naquele momento eu não furei apenas uma orelha. Supostamente, eu furei a dignidade de um homem. Rompi violentamente o dogma do patriarca. As esperanças de um neto, um bisneto, muitas mulheres e o cara que estaria compartilhando imagens enaltecendo o flamengo nas redes sociais.

Talvez eu devesse pedir perdão.

Mas eu nunca mais pude comer biscoitos de chocolate.
Uma das coxas do frango assado não mais me eram franqueadas; quando muito, um pedaço seco de peito do mesmo frango.
Meu achocolatado foi cortado da lista de compras semanal.
Eu só tinha acesso a caixas de bombom quando, no meio da madrugada, eu roubava algum que ninguém sentiria falta (talvez o bombom de torrone, da caixa da Garoto);
Quase tive minha faculdade interrompida, se não fosse um golpe do destino que me colocou para trabalhar dentro da faculdade: dois anos trabalhando em troca de uma bolsa integral e um vale transporte.
Minha monografia foi passada  como um evento inútil.
Nunca recebi parabéns pela minha formatura.

Talvez eu devesse pedir perdão.

Mas não.

Eu apenas agradeço. Agradeço por ter sentido todo o peso do mundo entre paredes que eu era ironicamente obrigado a chamar de lar. Paredes que mofaram, num franco contraponto ao meu crescimento. Eu jamais me enchi de fungos: eu lutei contra teias de aranha e transcendi o buraco no qual eu poderia estar metido. Eu tatuei o baluarte da minha própria libertação. O amor que eu acredito está em minha pele, para todo o sempre. Corri de bar em bar. Pulei de cama em cama. Cada corpo com qual troquei suor foi o meu grito de independência. Bêbado e imundo em alguma esquina, eu era a própria revolução. Fumei cigarros manufaturados na bíblia que me condena. Me entorpeci de tanta força que arranquei do âmago, nos momentos mais absurdos possíveis.

"Eu apenas preferia que você nunca tivesse nascido".

"Você é uma aberração".

E todas as vezes que fui chamado de "sujeito", como se fizesse parte da escória da humanidade.

E há aqueles que acham que eu deveria pedir perdão.

Não. E hoje, eu perdoo.

A pessoa. Jamais o ato.

E por isso eu odeio o preconceito. Não só aqueles desferidos contra mim, mas também aqueles que partem de mim. Ora, sou humano. Perfeitamente falho. Luto diariamente contra a incoerência quando acordo, e analiso cada ato ruim quando pouso minha cabeça no travesseiro. Cada toque de meus dedos em meu teclado produz uma melodia de arrependimento e de análise. A certeza de que o ontem me leva para o amanhã, embora o hoje seja ainda nebuloso.

Em algum dia de 2013, contudo, eu continuo me sentindo top down on the strip, looking on the mirror and i'm checking out my lipstick. Ainda me sinto obrigado a me refugiar em uma montanha para demonstrar amor.

Ora, e como não, diante da verdadeira guerra ideológica travada?

Tornei-me blásfemo em legítima defesa. Odeio deus e todos os seus, alegando estado de necessidade. Ofendo cada religioso de araque que cruza o meu caminho argumentando estrito cumprimento do dever legal.

E ainda assim, não consigo me eximir de toda a culpabilidade. Tal qual o cristo que renego, estou pregado a uma cruz. Posso ser queimado em praça pública a qualquer momento. A morte soa uma redenção se, ao menos, eu tivesse a certeza do retorno no terceiro dia. Mas três dias jamais seriam capazes de mudar tudo.

Porque tudo o que cresci daquele algum dia de 2002 para este algum dia de 2013 não pode ser chamado de três dias.

Como gato, perdi todas as minhas sete vidas.

Fiz pacto com todos os demônios com os quais dormi em nome da minha crença.

Cada travesseiro no qual já afundei minha cabeça está manchado de lágrima.

Mas hoje, eu tenho todos os biscoitos de chocolate.
Devoro sozinho um frango assado inteiro, sem prestar contas a ninguém.
Mergulho em uma banheira de achocolatado unicamente para meu prazer.
Compro caixas e mais caixas de bombom e faço caridade com a gordura localizada do meu corpo.
Me formei.
Minha monografia se tornou a minha bíblia.
E me tornei um verdadeiro humano.

Em algum dia de 2002, isso jamais seria possível. Mas lá estava eu, anticipating.

This is my song they are playing:

Independência ou morte.

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